Como qualquer evento dramático, trágico e universal, a pandemia da Covid-19 deixou para trás consequências que podem ser abordadas com diferentes enfoques e impacto nas nossas interações sociais. Sem lugar a dúvidas, os meios de comunicação saíram muito fortalecidos desse período desafiador que superamos recentemente.
É inegável a importância que as diferentes mídias exerceram no processo de enfrentamento à crise sanitária mundial. Principalmente reconhecendo que, pela imposição de ser algo completamente novo, ninguém sabia qual a melhor forma de enfrentar cada novo dia ou cada etapa da pandemia. Aprendemos todos juntos, à medida em que as coisas aconteciam e, nesse cenário, os meios de comunicação assumiram um papel fundamental no processo.
Sem entrar na importante discussão das diferentes mídias que podemos identificar, com características e objetivos distintos e, por vezes, divergentes, este comentário está dirigido aos meios de comunicação tradicionais e não às novas e emergentes mídias sociais.
Indubitavelmente, os meios de comunicação tradicionais desempenham um papel fundamental na nossa sociedade, como ficou comprovado durante a pandemia. Com base nesse aprendizado recente, o foco desta discussão é perguntar qual o papel da mídia tradicional frente a outro tema importante, o câncer.
Reconhecemos o câncer como um problema universal de saúde pública com consequências emocionais muito particulares e um impacto financeiro cada vez maior. Mundialmente, é a segunda causa de morte, atrás das doenças cardiovasculares, com mais de 10 milhões de óbitos a cada ano, uma boa parte dos quais poderia ser evitada reduzindo fatores de risco e fazendo diagnósticos mais precocemente.
No Brasil, o câncer é responsável por mais de 700 mil casos a cada ano e deverá tornar-se a primeira causa de morte antes de 2030. De 2010 a 2019, observamos um aumento de 31% na mortalidade com mais de 230 mil óbitos pela doença a cada ano. Câncer já é a primeira causa de morte em 10% dos 5.570 municípios do Brasil. Todas as estimativas indicam que esses números continuarão aumentando nos próximos anos, particularmente se nenhuma atitude for tomada, se nada for feito.
Nesse sentido, é válido perguntar qual o papel da mídia (impossível não relacionar com o impacto positivo que teve durante a Covid-19) com relação ao câncer. De forma clara e direta, não é difícil esperar que os meios de comunicação devam informar e educar a sociedade com relação a um problema tão importante como o câncer.
Sabendo que o câncer é curável quanto antes for diagnosticado, promover o diagnóstico precoce da doença é essencial. Informar sobre quais os exames necessários e sobre como ter acesso aos mesmos ou onde procurar esses exames, é de fundamental importância.
Reconhecendo que, apesar de avanços recentes, a doença persiste com um estigma muito negativo em parte da população, sensibilizar a sociedade corrigindo mitos e desinformação é um papel que também pode ser assumido pelos meios de comunicação. Durante a pandemia, a mídia teve um papel fantástico nesse sentido. Informar e sensibilizar as pessoas quanto aos fatores de risco mais prevalentes e promover hábitos mais saudáveis também deve ser uma prioridade. O aumento da incidência da doença não deve ser considerado um fato inevitável. Certamente, é algo que podemos começar a modificar com informação que leve à modificação de hábitos e comportamentos (educação).
Dado o impacto social que o câncer tem, influenciar políticas públicas é de fundamental importância, chamando atenção para questões de acesso, falta de recursos e problemas de estrutura com impacto em estratégias de controle da doença.
Considerando todas estas perspectivas e possibilidades, é válido questionar por que não reconhecemos nos meios de comunicação uma maior participação relativa ao câncer. Será que a mídia está realmente cumprindo sua função social nesse sentido? Este questionamento assume uma importância particular quando vemos o espaço que a imprensa tradicional oferece, por exemplo, aos acidentes de trânsito. Nada contra apresentar e destacar a mortalidade relacionada aos acidentes de trânsito, assunto que merece ser informado, se beneficia de educação e é passível de prevenção e sensibilização da sociedade. Mas devemos reconhecer, numa argumentação comparativa, que a mortalidade por câncer é muitas vezes maior à associada ao trânsito. Analisar os motivos dessa desproporção nos parece uma discussão importante.
Dados da Secretaria da Saúde de Porto Alegre referentes a 2023 até o momento (setembro 2023) indicam 1.968 mortes associadas ao câncer, enquanto que, no mesmo período, 47 óbitos relacionados a acidentes de trânsito foram registrados. Para o ano de 2022, foram registradas 2.931 mortes por câncer e 130 óbitos em acidentes de trânsito.
Será que podemos desenvolver estratégias para abordar o estigma do câncer, cumprir com essa importante função social e evoluirmos mais ainda como sociedade, sem perder espaço comercial? Se isso não foi feito ainda, se é um novo desafio, sugiro descobrirmos em conjunto a melhor forma de comunicar o que é necessário neste sentido. Gerar esta discussão com todas as partes interessadas, profissionais da mídia, membros da sociedade, pacientes, administração pública e representantes da área médica, é uma necessidade urgente. O câncer e suas consequências não vão esperar.
A experiência com a Covid-19 e o número de mortes evitadas durante a pandemia por participação direta dos meios de comunicação certamente é um exemplo do que pode ser possível se conseguirmos sensibilizar a estrutura administrativa e editorial dos meios de comunicação e em conjunto descobrirmos um novo caminho para evoluirmos como sociedade.
Carlos Barrios é médico oncologista do Grupo Oncoclínicas e diretor e pesquisador do Lacog - Grupo Latino Americano de Investigação Clínica em Oncologia.
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