Para ninguém confundir essa palavra com seu sentido em italiano, ou em talian, beco aqui significa “rua estreita e curta, às vezes sem saída”, como sentencia o Dicionário Houaiss. Pois Manuel Bandeira tornou famoso um beco da Lapa, no Rio de Janeiro, com dois poemas: Poema do Beco, publicado no livro Estrela da Manhã, em 1936, com uma tiragem de 47 exemplares, e Última Canção do Beco, publicada no livro Lira dos Cinquent’anos, tendo no final a data em que foi escrito: “25 de março de 1942”.
O beco é, na realidade, a Rua Morais e Vale, na Lapa, onde Manuel Bandeira foi residir em 1933, mudando-se da Rua do Curvelo, do bairro Santa Teresa. O Poema do Beco ficou estreito e curto também, com apenas dois versos, como se fossem as duas linhas das calçadas, de um lado e outro:
Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte?
- O que eu vejo é o beco.
Nesse “dístico”, como o poeta vai designar o poema, Manuel Bandeira coloca em confronto com o beco todas as belezas do Rio de Janeiro, tais como exaltadas pela literatura e pela imprensa: a paisagem, o Morro da Glória, a Baía de Guanabara... A mensagem do poema é a de que o lugar mais importante do mundo é o recanto em que se vive e que se vê sem sair do lugar. Frente à “cidade maravilhosa”, maravilhoso é “o que eu vejo”, o beco.
O segundo poema, escrito alguns anos depois, se desdobra em sete longas estrofes, de sete versos cada uma, lamenta a destruição da casa em que Manuel Bandeira morava no beco. Mas nem tudo é destruído, como fica claro nas duas primeiras estrofes da Última Canção do Beco:
Beco que cantei num dístico
Cheio de elipses mentais,
Beco das minhas tristezas,
Das minhas perplexidades
(Mas também dos meus amores,
Dos meus beijos, dos meus sonhos),
Adeus para nunca mais!
Vão demolir esta casa.
Mas meu quarto vai ficar,
Não como forma imperfeita
Neste mundo de aparências:
Vai ficar na eternidade,
Com seus livros, com seus quadros,
Intacto, suspenso no ar!
Como dá para ver, um poema de pura filosofia, que continua nesse tom até a última estrofe!
Quando estive no Rio de Janeiro pela primeira vez, ainda na minha puberdade poética, tive a sorte, ou o prêmio, de me hospedar num pequeno hotel no bairro da Lapa. Sendo um leitor contumaz de Manuel Bandeira, circulei pelo bairro até encontrar o beco. Lá estava ele, com o nome da Rua e uma placa informando ao transeunte que ali tinha morado o poeta Manuel Bandeira.
Então, também para mim, o beco continua “intacto, suspenso no ar”!
Agora, leio no noticiário que a Rua Morais e Vale foi revitalizada, dentro do Projeto Reviver Centro, da Prefeitura do Rio. A inauguração desse retorno ocorreu há apenas alguns dias, num sábado, a 18 de março. Foi isso que me fez revisitar esses dois poemas do beco!
Manuel Bandeira, o poeta do beco (Foto: Divulgação)
José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.
pozenato@terra.com.br
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