O intenso acontece num piscar de olhos. Tanto para o bem, quanto para o mal. Essa metáfora é o que levarei desse momento delicado que fez o mundo parar e ninguém sabe ao certo o devir.
A pandemia me colocou diante de uma página em branco – precisei reescrever os dias de minha vida a partir de então. Confesso que tenho um sentimento de pesar, de culpa até, vezenquando, por ser tão privilegiada: não preciso sair para trabalhar - posso ficar em casa em segurança, o que não é a realidade de tantos milhões de pessoas...
Assim, meu olhar, meu piscar de olhos, mirou o meu mundo: o meu corpo que abriga a minha alma, o meu espírito, a minha essência dentro da minha casa, (muitos possessivos, talvez) onde mergulhei de cabeça em novas maneiras de viver, tudo para não olhar para o abismo.
Neste isolamento, priorizei consumir arte. Leituras, filmes, cursos online. Música. Participei de duas lives como convidada, quem diria. Também escrevi, eventualmente. Não fiz bolo, não aprendi a fazer pão, mas cozinhei muito, fiz pratos muito bons, e agora sou aluna da primeira turma de um curso de culinária/gastronomia com o Chef Alex Atala – um dos melhores do mundo. É. Gentileza para comigo.
Me permiti escolher o que me faz bem, me concentrei no essencial, no belo, no inestimável trivial do dia a dia. Dancei. Chorei. Meditei. Tive crises de pânico. Li. Reli. Orei. Planejei. Cozinhei. Me apaixonei. Contemplei a natureza e as flores sempre que pude. Plantei gerânios e manjericão. Agi. Ajudei. Escrevi. Cantei (ahaha). Compartilhei. Desacelerei. Desapeguei. Faxinei. Incomodei. Aposentei maquiagem. Respirei para valer. Bisbilhotei pela janela e pela sacada. Sim, refúgios da pandemia, enquanto o Lobo Mau não vem.
Falar nisso, noite dessas, um momento singular me surpreendeu. Fui à sacada (ou balcão, se meu nome fosse Julieta) para dar uma olhada na rua. Contemplar as cerejeiras em flor nos canteiros da Júlio. Nenhum carro. Nem pessoas. Noite de sábado. Aspirei o ar profundamente. Pousei meus olhos nas pequenas árvores vestidas de primavera. Cinderelas.
De repente...
Num piscar de olhos, um pé-de-vento provocou uma revoada nas pétalas das cerejeiras. Lindo. Lindo de ver as pequenas e rosadas pétalas, tão leves, dançando no ar. Aos poucos, com suavidade, como neve, pousaram na grama dos canteiros e nas pedras centenárias e nos vãos entre os paralelepípedos... (... assim dou o tempo devido ao leitor para deliciar-se com o espetáculo na imaginação).
A cerejeira despetalada da Avenida Júlio
De repente...
Noutro piscar de olhos, houve uma tenebrosa aparição: munida de pá, vassoura, tridente (esse não sei bem), carrinho, saco de lixo e, muito rápida e in-competente, varreu, varreu, varreu. Catou até aquelas petalazinhas translúcidas, quase mortas, por entre as pedras.
Gritei para que ela parasse, mas por dentro. Ah, as petalazinhas! Que as deixasse ali!! A varredora de ruas não ouviu meus pensamentos. A poesia foi parar no saco de lixo. Cumprida a tarefa, a moça saiu de cena como surgiu – num átimo. Pensei nas vezes em que gritamos sem emitir sons e assim morremos um pouquinho também.
Permaneci ali, assombrada pela celeridade do acontecido – o belo e o trágico. Em um piscar de olhos, espreitei alguns instantes entre a vida e a morte. Pétalas de um rosa pálido, arrancadas pelo vento, ainda plenas de energia vital, chegaram ao chão e, agonizantes, acabaram sufocadas num saco de lixo.
Presenciei o efêmero, a fugaz magia do instante, do momento, do sempre, do nunca, do eterno, do jamais, do enquanto, do durante... dos segundos de uma eternidade... dos sete segundos, com muita sorte são quatorze segundos... Não, não temos o controle do tempo. Somos instantes. Vivemos de instantes. Esse mínimo contém o grandioso.
A sacada (ou balcão) de onde a cronista (que não se chama Julieta) observa o pulsar da vida
Pois, de minha sacada, em muda contemplação, com a mente desacelerada, me assombram os insights, as revelações que o inconsciente me apresenta, como pequenos brilhos, fagulhas que fazem sinapses e conexões. Faço uma leitura poética da vida, da soma dos segundos – ao nascermos, ao morrermos, ao amarmos...
Os pensamentos surgem, se encaixam uns nos outros e compõem quadros tão surreais que misturo uma visita às sakuras (cerejeiras) do Japão, dou um pulo na Paris dos anos 50, pelas imagens de Robert Doisneau, o fotógrafo do efêmero. Ele retratou as maravilhas da vida cotidiana, foi um cronista infalível no registro do que ocorre em um “piscar de olhos” – do instante em que algo acontece –, no cair de uma pétala ou no beijo do casal em frente ao Hôtel de Ville, em Paris, ou em milhares de outros. Doisneau era um caçador de instantes fugazes. Para ele, a beleza, para ser comovente, tem de ser efêmera.
O icônico beijo parisiense flagrado pelas lentes de Robert Doisneau
De repente...
O intenso acontece num piscar de olhos.
Marilia Frosi Galvão, professora, escritora e cronista
galvao.marilia@hotmail.com
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