POR JOSÉ CLEMENTE POZENATO
Neste mês de maio de 2020, completam-se 145 anos da imigração italiana. Em maio de 1875, depois de cruzar o oceano sonhando com a Terra da Cocanha, chegaram os primeiros imigrantes a esta região. Mais cinco anos, e estaremos celebrando o sesquicentenário dessa façanha histórica.
Revisitar essa história exige algumas cautelas. A primeira é de assegurar um ponto de vista equidistante, tanto dos sucessos como dos eventuais insucessos havidos ao longo do caminho. Assegurar também um olhar ajustado aos tempos, para não ver o passado com os olhos e os critérios de avaliação de hoje, e não ver o presente com os olhos enfeitiçados pelo passado.
Outra cautela, decorrente das primeiras, é a de não cair na tentação do simplismo, que pode levar a uma avaliação talvez em excesso laudatória ou, também em excesso, depreciativa. Tomados esses cuidados, o viajante ao passado estará em condições de fazer um balanço do que aconteceu e, a partir dele, desenhar como poderá ser o futuro.
Uma imigração é sempre um fenômeno complexo. No centro dele está o fato de que duas culturas são postas em questão, a dos que já estão no território e a dos que chegam. E é preciso admitir que o primeiro sentimento, de ambas as partes, é o de algum grau de receio, porque os dois estão diante do desconhecido.
O receio maior é o de quem chega, pois tem a desvantagem de não conhecer nada do território em que está se instalando. Mas há um receio também dos já estabelecidos, que não sabem se e em que a sua ordem cultural será modificada. Só depois de superados esses receios – e isso terá de ser um aprendizado feito pelos dois lados – é que um processo de trocas e de partilhas culturais poderá ter início. E que nunca estará concluído, é bom que se saiba também.
No caso da Colônia Caxias – e de outras Colônias vizinhas – o início desse processo foi retardado por praticamente uma geração, uma vez que, salvo situações pontuais, não se estabeleceu desde a chegada dos imigrantes um sistema de comunicação e de intercâmbio com a cultura já estabelecida, o que só vai ocorrer, em definitivo, com a implantação do transporte ferroviário, em 1910.
Essa demora deve ser levada em conta para se compreender a formação cultural de Caxias e da região. Ela permitiu que se consolidasse uma tradição cultural construída pelos imigrantes, a começar pela língua falada. Isso trouxe duas decorrências: uma, a de que ficaram mais evidentes as diferenças entre as duas culturas; outra, a de que esse aprofundamento das diferenças aumentou as possibilidades de confronto, o que também aconteceu.
A imigração italiana produziu um patrimônio cultural inestimável. Patrimônio imaterial, bem entendido. Um patrimônio múltiplo, que pode ser classificado em pelo menos três níveis: o dos valores, o dos saberes e o dos fazeres. Em cada um desses níveis, o imigrante italiano contribuiu com elementos não existentes na cultura que o recebeu. Não é o caso aqui de se inventariar essa contribuição, o que em grande parte já foi e vem sendo feito.
No plano dos valores, costuma-se destacar a disciplina do trabalho e a disciplina religiosa, mas não menos importante foi o do sentido da posse da terra e a da importância atribuída às instituições, coisas todas não muito robustas num povo de tradição quase nômade como é o gaúcho.
No plano dos saberes, igualmente, tem-se apontado a contribuição de novas técnicas no trabalho agrícola e o domínio de diversas técnicas artesanais, que serão um patrimônio que multiplicará seus efeitos com o advento da industrialização.
No plano dos fazeres, basta citar a recriação de uma culinária que, para muitos, é a face mais conhecida da tradição cultural do imigrante. E, como ensina Montanari, a cultura da comida é por onde as trocas culturais têm mais condições de êxito.
Mas o imigrante teve também o benefício de usufruir do patrimônio cultural dos que habitavam o território que os recebia, a tal ponto que os seus filhos já não se identificam, pura e simplesmente, com os filhos dos que ficaram na Itália. Também não é aqui o lugar de levantar uma lista das aquisições que os imigrantes e sua descendência obtiveram na nova terra, que não se resumem, com certeza, no uso da bombacha e do chimarrão...
Depois de 145 anos de “coabitação” cultural, parece finalmente claro para todos, ou quase todos, que as diferenças culturais são um patrimônio que não faz sentido ser eliminado. Ao contrário, a diferença deve ser cultivada, como uma riqueza a ser compartilhada. Onde não há diferenças, não há também trocas, não há comércio, não há nem mesmo sabor de viver.
O antropólogo Lévi-Strauss, na última vez que teve ocasião de falar sobre políticas culturais para o mundo, fez questão de frisar a necessidade da diferença, para que haja saúde social. Chegou a dizer que a afirmação da diferença exige até mesmo certo grau de discriminação, contanto que esta não seja agressiva nem excludente.
Caxias, depois de 145 anos, é uma cidade pluricultural: além da cultura dos habitantes da província gaúcha, com a qual o imigrante italiano iniciou o processo de mútuo aprendizado, conta ela hoje com a contribuição de inúmeras outras fisionomias culturais, do Brasil inteiro e, também isso começa a ser visível, do mundo inteiro.
Será ela no futuro uma cidade quase anônima, igual a qualquer cidade de seu porte no mundo? Certamente não. A identidade nela criada é tão peculiar que certamente resistirá à incerteza provocada pelas mudanças. Há nela um patrimônio gravado fundamente na mente e no coração das pessoas, tanto das que nela nasceram como das que aprendem essa sua história, que resistirá à corrosão do tempo.
E esse patrimônio, não há exagero na afirmação, tem seu marco de referência na cultura construída pelo imigrante italiano nos difíceis anos iniciais de insulamento.
José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado "O Quatrilho", que foi adaptado ao cinema, concorrendo ao Oscar.
e-mail: pozenato@terra.com.br
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