Eram 6h45min da manhã, o trem lotado e eu pensando: é possível que as consequências da cura sejam piores do que a doença? Ou seja, a minha vida, assim como a de todos nesse vagão lotado, vale menos do que a queda da bolsa de valores ou a parada temporária da economia mundial?
Eu sou mãe. Mas também sou filha, irmã, esposa, sobrinha e neta. Sempre trabalhei e paguei minhas contas e todos impostos (altíssimos!) religiosamente. Não devo nada a ninguém. A vez agora é do sistema e dos governos mostrarem um pouco de gratidão e humanidade e assumirem essa conta que só vai crescer, é verdade. Mas cifras são números e vidas, oh well… são vidas!
Na última sexta-feira, depois do anúncio de que escolas, bares, pubs, restaurantes e clubes fechariam por tempo indeterminado no Reino Unido por conta do impacto do Covid-19, o que os ingleses fizeram? Lotaram parques e praias - independentemente do frio de cinco graus e do vento gelado que cortava até a alma. O clima era de férias. Um comportamento incompreensível num país onde mais de 85% da população é alfabetizada e lê muito.
A retaliação ao governo por parte da imprensa inglesa e de todos os envolvidos na saúde pública foi tão astronômica que na segunda-feira, dia 23, o primeiro ministro Boris Johnson não teve outra opção senão decretar o “lockdown”. Todo mundo fica em casa, com exceção de quem trabalha em serviços essenciais à sociedade. A ordem é parar tudo. E Londres parou.
Então, de casa, longe do perigo dos trens lotados da semana passada, eu percebo que o Covid-19 expõe divisões sociais que andavam meio despercebidas. Esse vírus não escolhe classe social, sexo ou religião. O príncipe Charles é prova disso. Mas, diferentemente da maioria das pessoas com sintomas do coronavírus, que esperam até 10 dias para serem testadas, o filho da rainha foi diagnosticado rapidinho.
Charles e Camila escolheram o castelo de Balmoral, na Escócia, para passar os próximos meses em isolamento. Nada mal, considerando que o castelo está situado em uma área de 50 mil hectares com quadras de esporte, jardins, pôneis e até veados. Já os menos providos vão se aglomerar num apartamento minúsculo, sem sacada, sem emprego, sem dinheiro e com filhos para educar em casa.
Boris Johnson não vai precisar encarar as filas quilométricas dos supermercados e farmácias e nem vai sofrer com a decepção de não encontrar papel higiênico. A ala inteira de um hospital privilegiado no centro de Londres já foi reservada para quando sua noiva der à luz daqui a alguns meses, em meio à crise do coronavírus.
O resto dos hospitais, aqueles designados para mim, por exemplo, estão transbordando. Eu chorei ao ver a imagem de pessoas deitadas no chão de um hospital aqui em Londres esperando por leito. No chão. Podia ser eu. Podiam ser meus pais. Podia ser minha avó.
São essas as diferenças que essa “gripezinha” expõe. E também a incapacidade de se colocar no lugar do outro. Como disse, o coronavírus não escolhe. Ele se dissemina.
Mas também tem positividade nessa tragédia. Mais de 500 mil pessoas se candidataram a ajudar o NHS (Sistema de saúde pública inglês) nessa luta. Voluntários que não medirão esforços para cuidar dos mais necessitados em suas comunidades e aliviar a pressão na linha de frente. Hoje, às 20h, vamos todos às janelas saudar os incansáveis heróis dessa nação.
Em tempos de guerra, a economia não morre, somente para de funcionar. Quem morre são as pessoas, e essas não voltam. Fique em casa. Não ignore a gravidade do problema. Não queira ser o próximo a deitar no chão de um hospital.
Xênia Chemello é jornalista, natural de Caxias do Sul, formada pela UCS. Reside em Londres desde 2003, onde atua como gerente de eventos no grupo Guardian News and Media.
e-mail: xchemello@hotmail.com
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