Caxias do Sul 21/11/2024

Muito além de uma bela canção

‘Donna mi prega’: o poema-chave de Guido Cavalcanti
Produzido por José Clemente Pozenato, 27/06/2024 às 08:53:38
José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”
Foto: Marcos Fernando Kirst

Para o público leitor, durante muito tempo, o poeta italiano Guido Cavalcanti (1255 - 1300) foi lembrado somente pela canção Donna mi prega.

É um poema de cunho filosófico que teoriza a respeito do amor numa perspectiva considerada averroista por uns, tomista por outros. Ela foi objeto de análise e de comentários interpretativos no período humanista.

É evidente a segurança e a habilidade de Guido no uso da linguagem filosófica, dando a impressão de que o poeta buscava dar uma demonstração de competência intelectual, o que, aliás, é declarado na primeira estrofe e na estrofe final: é a pessoas de mente esclarecida que se dirige a canção.

Para facilitar a compreensão dessa lição de filosofia, opto por fazer uma paráfrase do poema, no lugar de uma tradução, que seria bem mais complexa.

Eis a paráfrase:

A mulher (gênero, e não uma pessoa) me roga, por isso escrevo sobre um assunto que é, muitas vezes, cruel e acerbo a ponto de chamar-se “amor”, que tem “a morte” como expressão derivada. E quem nega que seja assim, venha experimentar a verdade!

Para tanto, exijo um leitor inteligente, pois não espero que alguém de razão limitada possa chegar a entender esta argumentação.

De fato, sem os instrumentos da filosofia natural (distinta da teologia) não conseguirei demonstrar onde amor reside, o que o faz nascer, qual é seu poder e sua força, e também qual a sua essência. E ainda, qual o movimento de ânimo que suscita e de como o prazer, que resulta do “amar”, é representável a ponto de ser percebido pela vista.

O amor adquire forma naquela parte do espírito em que se encontra a memória, e é causado por uma obscuridade que deriva de Marte, da mesma maneira em que os corpos visíveis aparecem por efeito da luz do sol

Ele, o amor, é criado, e por isso não é uma substância, mas uma ocorrência, e adquire um nome quando passa a ser percebido pelos sentidos. Ele brota da visão de uma figura de pessoa quando esta atinge o intelecto e nele se fixa de modo estável.

No intelecto, o amor não possui nenhum poder, porque é tão somente uma qualidade. O intelecto está em contínuo processo de compreensão, e não de provar prazer: ele se limita a “pensar”, e assim não oferece elementos sensíveis de referência. O amor é uma paixão ligada à alma sensitiva, ao passo que a contemplação abstrata do intelecto é uma experiência distinta e separada do amor. O amor não é uma faculdade racional, mas sensitiva. O amor não usa o juízo para raciocinar, uma vez que o desejo substitui a razão: faz mau uso da razão quem se apega viciosamente à paixão.

Da potência do amor resulta muitas vezes a morte, se a força vital que sustenta o homem contra a morte sofre forte obstáculo em seu modo de operar: E isso não porque o amor seja contra a natureza, mas porque não tem domínio seguro sobre si mesmo. Ao mesmo desfecho pode levar o fato de alguém esquecer o sumo bem.

O amor, quando o desejo se torna tão intenso que ultrapassa os limites naturais, transforma o riso em pranto, faz mudar de cor, transforma o aspecto exterior por força do medo; é inconstante, mas tudo isso se encontra com mais frequência em pessoas de ânimo nobre.

O enamorar-se provoca suspiros e ninguém pode se livrar disso, para encontrar descanso, enquanto a mente não entende tudo o que está acontecendo. Nessa condição o amor extrai dos olhos do enamorado um olhar tal que faz a atração evidente: e isso não poderá mais ser escondido depois de se chegar a esse ponto.

As belezas percebidas são como flechas que podem provocar as feridas do amor, porque o desejo é submetido à prova do temor: e o ânimo que é traspassado pela flecha do amor se refina e aperfeiçoa.

O amor não é visível aos olhos: porque a claridade desaparece nele. Privado de cor, além de substância, e posto no escuro, o amor rejeita a luz. Com toda sinceridade afirmo que só de um amor assim nasce recompensa.

Tu, canção, podes andar com toda segurança, por onde te agrade, porque eu te elaborei de tal forma que a tua argumentação será amplamente elogiada pelas pessoas competentes: quanto às outras, tu mesma não desejas ficar entre elas.

José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.

mail pozenato@terra.com.br

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