Em meu romance O Quatrilho, coloquei como baliza inicial da trama a opção de um casal entre ir para “as colônias novas”, ou encontrar outro ramo de atividade que não a do cabo da enxada. Não foi uma situação inventada por mim.
É que eu acabava de assistir a uma mesa redonda em que se falou que no início do século XX, com o aumento de habitantes do meio rural, consequência das famílias com dezena ou mais de filhos, surgiram duas novas opções de vida: ou migrar para as colônias novas, no norte e noroeste do Rio Grande do Sul e sul de Santa Catarina, ou ingressar em alguma atividade industrial.
Foi quando surgiram em Caxias (que ainda não era Caxias do Sul) a funilaria, que deu origem à metalurgia; a tecelagem, que deu origem aos lanifícios; os moinhos, que deram origem à indústria alimentícia...
Quinze ou vinte anos depois de ter escrito o romance, em que o olhar foi posto nos que decidiram ficar e mudar de atividade, tive a oportunidade de ver o que aconteceu com os que escolheram buscar novas terras.
A primeira descoberta da pesquisa feita nas duas margens do rio Pelotas e do rio Uruguai, foi a de que a migração das antigas colônias foi empreendida por comerciantes de terras, ligados quase sempre às serrarias do ciclo da madeira. Não vou citar nomes, mas esses agentes tinham sobrenome italiano e vários deles eram donos de serrarias, que deram origem ao ramo industrial da madeira em Caxias e região.
Outra descoberta, ainda mais interessante, foi a de perceber que a bagagem cultural levada na migração de quase cem anos antes continuava bem guardada! Nessa bagagem estavam, bem conservados, por exemplo, o jogo da mora, o jogo de bochas e os jogos de cartas.
O jogo da mora tem origem antiga, praticado pelos egípcios, e migrou para Roma, possivelmente depois que os romanos derrotaram Aníbal. Ambientou-se depois na Itália inteira, a ponto de Bernardo Bertolucci, no filme Novecento, de 1976, mostrar uma cena em que um grupo de paesani está jogando a mora. Era um jogo praticado, de preferência, nas bodegas, em todo o norte da Itália, com copos de bom vinho. Veio para a Serra Gaúcha com os imigrantes e daqui foi levado para as novas colônias, onde continuou sendo cultivado, em rodas animadas e barulhentas.
Jogo da mora tem origem no antigo Egito e chegou à Serra Gaúcha (Foto de Aldo Toniazzo, pertencente ao acervo do IMHC/UCS, registrada no município de Celso Ramos - SC)
Outro jogo trazido pelos imigrantes foi o jogo de bochas. Era praticado nas capelas das comunidades rurais, e teve importante papel na formação do espírito associativo. Havia torneio de bochas com jogadores de toda a região serrana gaúcha. Esse jogo também migrou para as colônias novas. As canchas de bochas fazem parte da paisagem de todas as vilas e povoados das fronteiras entre o Rio Grande do Sul e Santa Catarina, ao lado de igrejas, de casas de comércio, de campos de futebol...
Os jogos de cartas, vindos também com os imigrantes, sempre fizeram parte do ritual das reuniões de famílias e de vizinhos. Não por acaso o filme O Quatrilho mostra uma sequência inteira desse jogo numa noite de filò. Os jogos mais apreciados, além do quatrilho, eram a bisca (brìscola) e o três-sete (trisset). Os três continuam presentes na região ocupada pela migração interna, com as mesmas práticas de convivência.
A indústria doméstica, junto com o artesanato, migrou também. Os moinhos de roda d’água fazem parte da paisagem cultural da área. Eles também são herança dos imigrantes italianos, que colocam diante de nossos olhos um saber muito antigo, o de aprisionar a água dos rios em calhas de madeira e transformá-la em força motriz, que faz movimentar uma pesada mó de pedra para transformar o milho e o trigo em farinha. Nas margens de todos os riachos da região pesquisada, há ainda ruínas de moinhos desativados, porque deram lugar aos moinhos movidos por energia elétrica.
A produção de vinho caseiro continua também. Não esqueço que, na visita a uma casa no interior do município de Zortéa, em Santa Catarina, o proprietário nos brindou com um vinho feito por ele. Provei o vinho, degustando seus aromas, e disse:
- É vinho de uva Isabel, não é?
- Isso! – exclamou ele. – Herança do meu avô! Ele trouxe as mudas de parreira de Caxias. E eu vou lá sempre, quando tem a Festa da Uva!
É isso. A cultura constrói laços que não se desatam.
José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.
pozenato@terra.com.br
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