POR MARCOS FERNANDO KIRST
O pancho é uma iguaria típica da gastronomia popular no além-fronteiras gaúcho, em especial na Argentina e no Uruguai. Primo estiloso do cachorro-quente brasileiro, via de regra é entregue às papilas salivantes do cliente de forma simples e saborosa, composto por uma salsicha comprida e especial envolta em um pão comprido e especial, adornado com queijo derretido fino e especial e sem outras complicações extras. O segredo do sucesso do lanche reside na qualidade dos ingredientes básicos: pão de primeira, salsicha de primeira e queijo de primeira, artigos que nossos hermanos são campeões em prezar.
Os brasileiros já adotaram também o pancho em suas tendas rueiras de lanches, especialmente nas cidades gaúchas, habitadas por gente que transita com frequência para “o outro lado” e vem de lá saudosa de lambuzar-se com a delícia. Apesar dos esforços louváveis e competentes dos profissionais brasileiros, apreciar um pancho do lado “de cá”, por mais saboroso que ele seja, carece do glamour que se obtém quando se está do lado “de lá” mastigando um pancho, confeccionado em espanhol. Aqui, não é a mesma coisa, apesar de a coisa ser às vezes tão boa quanto lá.
Assim sendo, dias desses, vimo-nos, minha senhora e eu, subitamente materializados nas fervilhantes ruas de uma cidade fronteiriça do lado “de lá” (coisas assim acontecem com frequência na vida de jornalistas, acreditem), mais especificamente em Rivera, no Uruguai, caçando refrigerantes de pomelo, adquirindo nacos de queso uruguayo, vasculhando prateleiras de mercearias atrás de dulce de leche, galetitas, alfajores, vidros de mayonesa e saquinhos de mistura instantânea para purê de papas. Finda a caçada, exaustos, decidimos nos abancar frente a uma confiteria (do lado “de lá” é costume os estabelecimentos disporem mesas na calçada, o que gera outro charme especial à atmosfera citadina) para saborear alguns doces típicos e observar o movimento dos nativos.
A ideia era irmos nos ambientando ao entorno, aos sabores, perfumes e hábitos locais para, logo mais, adularmos nossas papilas com dois panchos uruguaios feitos no Uruguai e devorados em uma “calle uruguaya”. No entanto, mal imaginávamos que, em instantes, as salsichas dos panchos protagonizariam um episódio marcante ao nosso lado. Episódios marcantes também costumam acometer o cotidiano de casais de jornalistas atentos, acreditem. E foi o que aconteceu.
Quando nos demos por conta, entre uma e outra mordiscada nos doces adquiridos na confiteria tradicional, um sujeito de meia-idade se instalara em pé ao nosso lado, na calçada, e tirava de dentro de uma sacola algumas belas (e certamente saborosas) salsichas de pancho, com as quais fazia a festa (e o almoço) de um cachorro (perro) peludo que por ali se aquerenciava, entre a clientela do local. Contamos uma, duas, três, quatro... cinco salsichas doadas generosamente pelo benfeitor e abocanhadas avidamente pelo sortudo quadrúpede habitante das calles do lado “de lá”.
Após uma breve troca de palavras, descobrimos que o sujeito era um porto-alegrense que cultivava o hábito de alimentar cachorros “de rua” sempre que deparava com algum deles, onde quer que estivesse. Afagava o cusco uruguaio enquanto conversava conosco, já ambos amigados (o porto-alegrense e o perro) pela magia aproximativa que sabemos existir latente no universo da gastronomia (quem não vai se amigar de imediato de alguém que de repente nos enfia na boca cinco salsichas de pancho, pergunto eu?). Dado o relato, sumiu-se o benemerente da salsicha por entre o tráfego da calle, e ficamos nós, minha senhora e eu, de bocas abertas, ao lado do perro com cheia pança de semipanchos.
Havíamos tido o privilégio de flagrar em ação um anjo protetor dos cachorros internacionais. Em Porto Alegre, certamente não os alimenta com salsichas de pancho, mas, talvez, com hambúrgueres de xis ou almôndegas. Quando circular por Caxias, talvez mime algum cachorrinho de rua com peças de polenta brustolada ou, quiçá, rodelas de salame ou codeguim. Alimentar cachorros abandonados à própria sorte nas ruas e calçadas é a bandeira pessoal do sujeito anônimo cujo ato flagramos em Rivera. Ele não muda o mundo, mas, certamente, transforma em algo bem melhor a parcela de mundo pela qual transita (por ruas e calles), para ele, para perros e cuscos e para quem tem o privilégio de privar de sua humanitária (e cachorritária) companhia.
Moral da história: voltamos ao hotel refletindo sobre as metáforas de vida latentes no ato flagrado e esquecemos de comer panchos uruguayos. Teremos de voltar, outro dia desses...
Marcos Fernando Kirst é jornalista e editor do portal www.silvanatoazza.com.br.
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