Já que estamos no centenário da famigerada Revolução de 23, tenho uma preciosidade para mostrar. É um registro feito por meu pai num pequeno caderno de memórias, contando a sua “difícil escalada do autodidatismo”.
É uma narrativa que dá uma ideia nada glorificante dessa revolução, mostrando como ela doeu no cotidiano da vida das pessoas, como na de um menino que morava em Conceição do Arroio, hoje município de Osório. Transcrevo a história – de um modelo de narrador! – em sua versão literal.
Eu já estava com os meus 13 anos de idade quando então explodiu a revolução de 23... Revolução dos Ximangos e dos Maragatos. E com ela um verdadeiro pânico se espalhou por toda parte: eram os lenços vermelhos do Maragatos ou os verdes e brancos dos ximangos.
Se algum “grosso” (era assim que os agricultores eram chamados pelos almofadinhas da cidade), pois é, se algum grosso se atrevesse a usar qualquer uma dessas duas cores, cuidado, poderia dar-se mal, poderia esbarrar com alguém que usasse cor contrária à sua e aí, então, poderia haver provocação, briga e, não raro, morte.
Certa vez eu vi quando o seu Barcellos deu um tiro de revólver num “bêbado” causando-lhe morte instantânea e isso só porque o pretenso bêbado usava lenço de cor vermelha.
Outro dia vi, também, quando dois malandros jogaram um estopim aceso no seio de duas moças que passeavam tranquilamente abraçadas pela praça. Usavam vestido de organdi, um tecido fino e muito inflamável e num instante se viram envoltas em terríveis chamas. Uma delas, a Rosa, era filha do seu Crescêncio lá da esquina, pertinho da igreja... Felizmente as moças foram socorridas de imediato e por muita gente, a maioria curiosos que mais estorvavam do que ajudavam.
Ninguém ficou sabendo ao certo o motivo que levou esses dois malandros a perpetrarem tão execrando atentado; talvez as moças em questão usassem algum distintivo, o que era comum...
Os tarados jogaram o estopim e sumiram disfarçadamente no meio do povo. Era um domingo de manhã, dia da festa do Padroeiro. O padre só ia uma vez por ano para fazer a festa.
Qualquer boato de aproximação de alguma força era motivo de inquietação, pois os revolucionários requisitavam animais para a cavalgadura, gado, porcos, e mesmo aves eram levadas.
Amedrontados, os colonos escondiam os seus animais em lugares seguros, ou seja, no mato; não derramavam assim tão facilmente o seu sangue em combates estúpidos, se bem que os enfadonhos mosquitos do mato tirassem disso regular proveito.
Se o marido saísse de casa para fazer alguma compra ou a fim de negócio, a mulher ficava em casa chorando e rezando, porque o marido podia ser preso, levado à força por algum revolucionário ou mesmo poderia ser morto por algum fanático.
Certo dia um piquete das forças revolucionárias acampou nas imediações de nossa casa e logo lançou os seus tentáculos em todas as direções; eram soldados mal-encarados que buscavam animais para a montaria, gado, porcos e mesmo aves eram levadas, para comer.
A nossa casa não seria uma exceção; também nós fomos molestados pelos esbirros das forças.
Chegaram de quatro. Eu estava na frente da casa:
- Boa tarde, menino. – Eram eles.
Voltei-me:
- Boa tarde.
- Cadê o teu pai?
- Meu pai está descansando.
- E tua mãe?
- Minha mãe também está descansando.
- E cadê a vaca?
- A nossa vaca morreu – respondi, e era mentira, a vaca estava escondida no mato.
- E quando foi que a vaca morreu? – insistiu o homem da revolução.
- Faz tempo.
- E o cavalo, está gordo?
- Nós não temos nenhum cavalo – respondi.
- E aquilo lá, o que é? Não é um cavalo?...
- Aquilo lá não é um cavalo, é uma égua – respondi. A égua estava pastando solta no potreiro.
Aquele que parecia ser o “chefe do bando” ordenou aos outros três que fossem repontar a guexa e eles foram...
E eu, para aquele que ficou esperando pelos comparsas:
- Como é o seu nome?
- Meu nome é “Leva Tudo” – respondeu-me ele.
- Eu posso ir junto, então? – ofereci-me. – Eu sei montar e também atirar.
- Vai te criar primeiro, pirralho – respondeu-me o soldado. – Isso não é brincadeira de criança...
- Mas isso é um absurdo – observei eu. Mas de nada adiantou a minha oposição... E lá se foram os quatro: dois encarapitados no lombo da égua e dois a pé, e eu aqui, plantado, a olhar com um misto de ódio e de raiva para aqueles quatro patifes que se perdiam na curva da estrada...
Não chamei o papai porque ele podia protestar e acabar sendo preso e levado. Não, eu não queria que algo de ruim acontecesse para o meu pai, por isso não o chamei... Quando acordou contei-lhe tudo o que havia acontecido. Ele não disse nada, mas ficou visivelmente aborrecido, nervoso... Mesmo quem era eu, um “porqueirinha” de apenas 13 anos de idade, para me oferecer para ir junto?...
Só depois de cinco meses a égua foi encontrada, lá nos campos do Caconda; estava seca de magra. Era assim: quando um animal cansava soltavam-no e pegavam outro. Aconteceu com o Juca. Ele foi à venda com uma garupeira de feijão para vender; lá tomaram-lhe o cavalo e em troca deixaram-lhe um “pele e ossos”. Mais tarde apareceu o legítimo dono e o levou. E o Juca ficou sem cavalo...
José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.
pozenato@terra.com.br
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