Caxias do Sul 22/11/2024

Máquina para comover

Resgate de conteúdos tratados em sala de aula segue adiante, com a poética de João Cabral de Melo Neto.
Produzido por José Clemente Pozenato, 18/11/2021 às 08:26:59
Foto: Marcos Fernando Kirst

Prosseguimos, com a poética de João Cabral de Melo Neto.

Sua posição é contrária à da visão romântica, de que o poema deve ser o repositório das emoções do poeta. Basta ler o prólogo de Gonçalves Dias, no seu livro Primeiros Cantos (1846), onde ele diz exatamente isto sobre suas poesias: “escrevi-as para mim, e não para os outros“.

No romantismo, o poeta se derrama na poesia, faz do poema um depósito de emoções, e quem o lê vai se comover com as dores confessadas pelo poeta. Para João Cabral, o poeta não deve falar de suas emoções, deve provocar emoções no leitor. Assim como o engenheiro que, quando faz um projeto, quer agradar os outros com a obra, não a ele, engenheiro. João Cabral propõe que o poeta faça a mesma coisa, que não fale de seu mundo pessoal na poesia.

Quando publica o livro de sua maturidade, chamado A educação pela pedra (1965), ele o dedica a Manuel Bandeira, com estas palavras: “A Manuel Bandeira, esta antilira para seus oitent’anos”. Isto é, está avisando o leitor que não está publicando um livro de poesia lírica, mas contra o lirismo. Não contra “o lirismo bem comportado”, como disse Manuel Bandeira, que defendia o lirismo dos bêbados e dos clowns de Shakespeare. Pelo contrário, João Cabral, de uma maneira meio moleque, dedica o livro A educação pela pedra a Bandeira dizendo que é contra todo lirismo.

Há uma tendência, um estado de espírito, na segunda metade do século XX, que é a de redescobrir a importância da racionalidade. Essa valorização nasce da grande frustração gerada pela Segunda Guerra Mundial, uma guerra baseada em irracionalidades. Desde suas motivações até os métodos com os quais foi desenrolada, ela foi contra a razão humana.

O paralelo que João Cabral traça entre sua poesia e a engenharia de Le Corbusier é, na realidade, uma retomada. Os famosos “cinco pontos para uma nova arquitetura” datam da década de 1920: as fachadas dos prédios são despojadas, sem adornos; não existem mais arcos, somente linhas retas; no lugar das colunas ornadas, como as gregas, só pilotis retos e limpos; nada de abóbadas com sua forma arredondada; e distribuição do espaço interno com objetivo de uso prático, sem escadas e corredores.

A poesia, também, não é lugar de ornamentos, mas de palavras limpas. O que João Cabral propunha em seu livro O engenheiro ele iria consolidar em sua última obra publicada: em A educação pela pedra, a racionalidade da forma voltaria a ser proposta no poema “Fábula de um Arquiteto”:

A arquitetura como construir portas,

de abrir; ou como construir o aberto;

construir, não como ilhar e prender,

nem construir como fechar secretos;

construir portas abertas, em portas;

casas exclusivamente portas e teto.

O arquiteto: o que abre para o homem

(tudo se sanearia desde casas abertas)

Portas por-onde, jamais portas-contra;

por onde, livres: ar luz razão certa.

Toda essa estética da arquitetura limpa e aberta iria enfrentar uma radicalização nos anos seguintes, com o surgimento do concretismo, da chamada “poesia concreta”. Talvez como reação a esse corte total da emoção, João Cabral de Melo Neto escreveu “Morte e vida Severina”. É verdade que, depois, se arrependeu. Disse que, se tivesse pensado mais, não o teria publicado, não sem antes ter extraído todos seus elementos emotivos.

Sabemos, a partir de relato de sua esposa, que ao escrever esse poema ele o modificava inúmeras vezes, a fim de deixá-lo o mais seco possível, com “palavras pedra”. A poesia concreta seguiu esse rumo. Mas isso é tema para outras leituras.

José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.

mail pozenato@terra.com.br

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