Por Marcos Fernando Kirst
Tempos de coronavírus. Tempos que assumem, às vezes sem que percebamos, ritmos diferentes, velocidades e silêncios outros a moldarem as aquarelas que retratam as banalidades do cotidiano, agora difuso, diverso. As normalidades de outrora revestem-se de rituais novos que, aos poucos, vão sendo integrados ao roteiro diário de seguir a vida nos novos moldes.
E novos ares, novos ritos, evocam e inspiram e requerem novos olhares. Sempre.
Sentado em um banco disposto defronte a uma loja de roupas, no corredor de um shopping recém reaberto obedecendo a critérios expostos em decreto, ergo os olhos das páginas do livro que me faz companhia enquanto a esposa desaparece no sumidouro das compras e deparo com os gestos que dão vida a uma vitrine. Aproveitando o movimento perto de zero no início da manhã de um dia de semana, a moça (proprietária, será?) prepara um manequim, municiada de um zelo e um detalhismo que me obrigam a colocar momentaneamente de lado as páginas escritas do russo de outrora para acompanhar ao vivo o tecer das páginas da vida no fluir do hoje.
A pequena vitrine acomoda nada menos do que cinco manequins femininas acotoveladas umas nas outras, por sinal, desrespeitando todas as regras de distanciamento mínimo impostas pelas leis municipais e estaduais, que esqueceram de englobar essa espécie nas regras a que estamos submetidos, nós outros. Nelas, ao menos, consigo vislumbrar as feições, todas desprovidas das máscaras, que também a elas não se impõem. Súbito, a manequim morena de cabelos longos, situada bem ao centro do grupo, é arrastada meio metro para trás pela moça, distanciando-se do restante da silenciosa equipe feminina composta por duas loiras e duas outras morenas, que seguem me observando, impassíveis, por detrás da vitrine.
A moça passa, então, a pentear com as mãos os cabelos da manequim, vestida com uma blusa de meia-estação com listras pretas intercaladas a listras amarronzadas. Delicadamente, ela tira a franja de cima dos olhos do boneco, organiza o caimento sobre os ombros, mexe com as duas mãos no centro do couro cabeludo, puxa e repuxa um maço de fios como se fosse preparar uma trança que acaba não saindo. A manequim, extremamente colaborativa, seguia impassível, confiante na competência das mãos habilidosas que lhe ajeitavam o cabelo reluzente, de capa de revista.
Tudo feito com gestos suaves, delicados, cuidadosos, provavelmente iguais aos que deve, a moça, fazer quando organiza os cabelos da filha, em casa, ou da irmã mais nova que sai para a festa (que saía, nos tempos de antanho, antes do vírus), ou da mãe já idosa. O rito é longo, demorado, sem pressa, até que, enfim, satisfeita com o resultado, a moça devolve a manequim a seu lugar determinado junto ao grupo de suas semelhantes e, enfim, tasca na blusa a etiqueta com o preço da venda: R$ 49,00.
Mas o serviço não terminou por aí. Agora ela vem de lá de trás do balcão empunhando uma vassoura e se bota a varrer uma área específica na entrada da loja, ao lado do bando das manequins bem penteadas. Varre a poeira que só ela mesma enxerga, massa de sujeira, que, devido a seu perfeccionismo, a seu detalhismo, à sua dedicação absoluta à profissão que exerce, será eliminada dali, e não haverá risco nenhum de ninguém vir a deparar com pó ao ingressar seu estabelecimento.
Foram-se, nisso, vários minutos, em que minha leitura freou e nenhum cliente entrou na loja, porém, o andar da vida demonstra que, em tempos de coronavírus, mesmo sob as vistas de ninguém, ou de apenas um bando de manequins observadoras de um esquivo leitor de banco de shopping, o zelo ainda encontra almas discretas e perfeccionistas a serem possuídas, para o bem dos valores que seguem sendo cruciais para nossa identificação enquanto humanidade.
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