Caxias do Sul 23/11/2024

Literatura de estiagem

Sugestão de leituras (ou releituras) de livros que evocam e enfocam securas
Produzido por Paulo Damin, 17/05/2024 às 07:59:58
Paulo Damin é escritor, professor e tradutor em Caxias do Sul
Foto: ARQUIVO PESSOAL

Uma bruxaria pra que a chuva dê um tempo é falar de livros que tratam da seca, do deserto, do estio. Quem sabe se, pensando no outro extremo, não se chega a um equilíbrio?

Um é Vidas secas (1938), do Graciliano Ramos. A história de uma família escapando da estiagem, no sertão do nordeste brasileiro. É tudo seco, nessa história, desde o cenário até a comunicação entre as pessoas. Baita exemplo de harmonia entre forma e conteúdo. Olha só como predominam certas consoantes aqui:

“Chegou-se à beira do rio. A areia fofa cansava-o, mas ali, na lama seca, as alpercatas dele faziam chape-chape, os badalos dos chocalhos que lhe pesavam no ombro, pendurados em correias, batiam surdos. [...] Chape-chape. Os três pares de alpercatas batiam na lama rachada, seca e branca por cima, preta e mole por baixo. A lama da beira do rio, calcada pelas alpercatas, balançava.”

Nesse trecho, não apenas a onomatopeia “chape-chape” ilustra o som ambiente. O Graciliano escolheu a dedo as palavras que dão conta da aridez, palavras em que se destacam os sons de t, p, k, x e s, consoantes secas (oclusivas e fricativas desvozeadas, se diz em fonologia. Consoantes líquidas seriam r e l).

O próprio termo “alpercatas” soa mais duro do que “alpargatas”. E de fato as alpargatas do personagem Fabiano são tão rígidas, tão ressecadas que produzem rachaduras nos pés dele.

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Outro romance, agora de deserto, é O estrangeiro (1942), do Albert Camus. A história de um homem, na Argélia, um cara muito apático, um legítimo tanto-fazista que vai passear numa praia e acaba matando um homem “por causa do sol”.

É notável como o personagem parece ver o sol como inimigo:

“Eu andava lentamente para as pedras e sentia minha testa inchar debaixo do sol. Todo esse calor se apoiava em mim e se opunha aos meus avanços. E, cada vez que eu sentia seu grande sopro quente no meu rosto, eu cerrava os dentes, apertava os punhos dentro dos bolsos das minhas calças, eu ficava todo tenso pra vencer o sol e essa embriaguez opaca que ele despejava sobre mim. A cada espada de luz que jorrava da areia, de uma concha esbranquiçada ou de um caco de vidro, meus maxilares se crispavam. Eu andei muito tempo.”

É um livro que dá sede. Principalmente porque o cara está lá na frente duma infinidade de água que não dá pra beber.

Paulo Damin é escritor, professor e tradutor em Caxias do Sul.

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