Não quero atrapalhar as operações de salvamento e nem o luto após as chuvaradas, então só vim fazer o que eu posso, que é, já que sou apenas um leitor, falar de literatura.
Lembrei dum conto do Borges, chamado O evangelho segundo Marcos, em que um estudante vai da cidade pro campo e fica ilhado:
“Baltasar Espinosa, olhando da varanda os campos alagados, pensou que a metáfora que equipara o pampa com o mar não era, pelo menos naquela manhã, de todo falsa.”
Aí ele decide ler a Bíblia para os indígenas que o hospedam, e os catequiza tão, mas tão bem que a consequência só poderia ser uma…
Outra memorável história de chuvarada está no Cem anos de solidão, do García Márquez: “Choveu quatro anos, onze meses e dois dias. Houve épocas de chuvisco em que todo mundo vestiu roupas pontifícias e fizeram cara de convalescente pra comemorar a estiada, mas logo se acostumaram a interpretar as pausas como anúncios de recrudescimento”.
Mas a mais impactante que me ocorre agora é As palmeiras selvagens, do William Faulkner. Um romance sobre uma inundação do rio Mississipi (o Taquari dos ianques):
“Era como se a própria água formasse três camadas, separadas e diferentes, a gordurosa e lenta superfície carregando um lixo espumoso e minúsculos detritos de raminhos e encobrindo como por um cálculo perverso o ímpeto e a fúria da inundação, e debaixo da inundação o riacho primitivo, o fio de água, murmurando na direção oposta, seguindo imperturbável e inconsciente seu rumo determinado e servindo seu fim liliputiano, como um carreirinho de formigas entre os trilhos pelos que passa um trem expresso, tão ignorantes (as formigas) da fúria e do poder dele como se se tratasse de um ciclone devastando Saturno”.
Na história tem um preso, um condenado a trabalhos forçados, que os presos todos vão ajudar a salvar pessoas ilhadas. Aí mandam o preso num caíque salvar uma mulher grávida, ele vai, mas o barco fica incontrolável e o cara vai parar quilômetros longe da colônia penal de onde saiu. É a chance de escapar, ele pode ficar livre, pode fazer da tragédia uma comédia, só que daí…
Paulo Damin é escritor, professor e tradutor em Caxias do Sul.
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