Caxias do Sul 23/11/2024

Literatura de chuvarada

Situação dramática vivenciada pelo Estado suscita evocações de páginas literárias clássicas
Produzido por Paulo Damin, 07/05/2024 às 07:57:11
Paulo Damin é escritor, professor e tradutor em Caxias do Sul
Foto: ARQUIVO PESSOAL

Não quero atrapalhar as operações de salvamento e nem o luto após as chuvaradas, então só vim fazer o que eu posso, que é, já que sou apenas um leitor, falar de literatura.

Lembrei dum conto do Borges, chamado O evangelho segundo Marcos, em que um estudante vai da cidade pro campo e fica ilhado:

“Baltasar Espinosa, olhando da varanda os campos alagados, pensou que a metáfora que equipara o pampa com o mar não era, pelo menos naquela manhã, de todo falsa.”

Aí ele decide ler a Bíblia para os indígenas que o hospedam, e os catequiza tão, mas tão bem que a consequência só poderia ser uma…

Outra memorável história de chuvarada está no Cem anos de solidão, do García Márquez: “Choveu quatro anos, onze meses e dois dias. Houve épocas de chuvisco em que todo mundo vestiu roupas pontifícias e fizeram cara de convalescente pra comemorar a estiada, mas logo se acostumaram a interpretar as pausas como anúncios de recrudescimento”.

Mas a mais impactante que me ocorre agora é As palmeiras selvagens, do William Faulkner. Um romance sobre uma inundação do rio Mississipi (o Taquari dos ianques):

“Era como se a própria água formasse três camadas, separadas e diferentes, a gordurosa e lenta superfície carregando um lixo espumoso e minúsculos detritos de raminhos e encobrindo como por um cálculo perverso o ímpeto e a fúria da inundação, e debaixo da inundação o riacho primitivo, o fio de água, murmurando na direção oposta, seguindo imperturbável e inconsciente seu rumo determinado e servindo seu fim liliputiano, como um carreirinho de formigas entre os trilhos pelos que passa um trem expresso, tão ignorantes (as formigas) da fúria e do poder dele como se se tratasse de um ciclone devastando Saturno”.

Na história tem um preso, um condenado a trabalhos forçados, que os presos todos vão ajudar a salvar pessoas ilhadas. Aí mandam o preso num caíque salvar uma mulher grávida, ele vai, mas o barco fica incontrolável e o cara vai parar quilômetros longe da colônia penal de onde saiu. É a chance de escapar, ele pode ficar livre, pode fazer da tragédia uma comédia, só que daí…

Paulo Damin é escritor, professor e tradutor em Caxias do Sul.

Do mesmo autor, leia outro texto AQUI