Por Eulália Isabel Coelho
A lenda mexicana de La Llorona tem pelo menos três versões com um ponto em comum: em desatino, uma mulher afoga seus filhos. A culpa não tarda e essa mãe passa a chorar incessantemente a morte das crianças. Na versão mais difundida, ela tira a própria vida após cometer o crime, passando a vagar aos prantos em busca de redenção.
Essa fantasmagoria folclórica é o ponto de partida para que o diretor Jayro Bustamante escreva sua história e traga ao público uma surpreendente metáfora sobre a Guerra Civil da Guatemala, ocorrida de 1960 a 1996.
Durante o período mais sangrento, entre 1981 e 1983, na ditadura militar de Efraín Ríos Montt, comunidades ixiles foram dizimadas. O governo acusava os indígenas de colaborar com regimes comunistas, como Cuba e União Soviética, motivo do massacre. As violações aos Direitos Humanos foram cometidas por forças do governo apoiadas pelos Estados Unidos, através da CIA.
Essa barbárie é a temática de La Llorona (A Maldição da Mulher que Chora, 2019) que usa o realismo fantástico para evocar um tema tabu na sociedade guatemalteca: o genocídio maya ixil. A impunidade sobre os crimes cometidos no país permanece e, recentemente, o governo levou adiante o projeto de anistiar os comandantes do exército e os guerrilheiros que cometeram crimes de guerra.
Sobrevivente ixil relata abusos durante a guerra
General de extrema-direita nega extermínio
Jayro Bustamante tem uma visão muito clara em seus projetos: “Dei-me conta de que nós que fazemos filmes temos uma responsabilidade extra e devemos criar conteúdos para algo mais do que entreter”, disse em recente entrevista ao El País.
Para a antropóloga Alejandra Colom Bickford, uma das produtoras do filme, a obra “coloca a Guatemala no ‘mapa’ com uma história que incomoda os negacionistas do genocídio”. Alejandra é diretora da Fundación Ixcanul, criada pelo cineasta para fazer trocas sociais por meio da arte e da cultura.
No filme, o general de extrema-direita, Henrique (Julio Diaz), um dos mandantes do genocídio, vai a julgamento. Os depoimentos de sobreviventes, mulheres ixiles, garantem a sentença de prisão, que logo será revogada. O gesto de impunidade se repetirá em inúmeros outros casos também na vida real. A frase “o que foi deixado para trás... foi deixado para trás”, articulada no filme, é a síntese de uma Guatemala que prefere ser desmemoriada a lidar com seus fantasmas.
O general Henrique, doente e paranoico, fica recluso em sua residência com a mulher, a filha, a neta e as empregadas, cercado de guarda-costas. É fácil perceber nesse momento que a casa nessa fábula política representa o país, enquanto o pranto da chorona que o general ouve é o do povo clamando justiça. Esse que está em frente à sua casa, atormentando-o em seu refúgio com palavras de ordem.
María Mercedes Coroy interpreta Alma
Crença popular na luta contra os espíritos
Se a mulher ixil que chora por seus filhos é fenômeno da imaginação popular, as mães que sofrem pelos seus mortos e desaparecidos não o são. O diretor consegue associar a lenda à brutal realidade vivida em seu país. A multidão que grita freneticamente causa um ruído para além de sua raiva incontida. É um ruído que, por não calar mais a verdade, acorda os espíritos fantasmais. É a maldição da “Mulher que Chora”.
O filme nominado ao Globo de Ouro, que acontece neste domingo (28/2), às 22h, aparece também na lista preliminar de aspirantes ao Oscar de Melhor Filme de Língua Estrangeira. Em 2019 recebeu o Premio Giornate degli Autori do Festival de Veneza.
Com La Llorona, o cineasta fecha o ciclo de sua trilogia que trata temas recorrentes na Guatemala ultraconservadora. Em Ixcanul (2015), ele evoca o drama indígena e em Tremores (2019) visita a temática homossexual (“los huecos”) e a pregação da “cura gay”.
Jayro Bustamante fez carreira na publicidade e formou-se em cinema na Europa pelo Conservatório Livre de Cinema Francês de Paris, continuando seus estudos de direção no Centro Experimental de Cinematografia em Roma. Ao voltar a seu país, fundou sua própria empresa cinematográfica, La Casa de Producción, na qual desenvolve seus filmes.
A distribuição de cinema independente é uma atividade inédita na Guatemala. “O mais complicado, além do financiamento, é tentar criar um novo hábito de consumo em um país onde a autocrítica ainda é considerada um pecado”, explica o diretor vencedor do Urso de Prata - Prêmio Alfred Bauer em Berlim por Ixcanul. Atualmente ele está produzindo vários projetos para outros diretores guatemaltecos e estrangeiros.
Assista ao trailer do filme AQUI
FICHA TÉCNICA
La Llorona (Guatemala/França 2019)
Direção: Jayro Bustamante
Roteiro: Jayro Bustamante, Lisandro Sánchez
Fotografia: Nicolas Wong Díaz
Elenco: María Mercedes Coroy, Sabrina De La Hoz, Julio Díaz Margarita Kénefic, Juan Pablo Olyslager, Ayla-Elea Hurtado
GLOBO DE OURO
La Llorona concorre ao Globo de Ouro de Melhor Filme em Língua Estrangeira ao lado de:
Another Round (Druk) – Dinamarca
Leia resenha crítica sobre Druk AQUI
Rosa e Momo (La Vita Davanti a Sé) – Itália
Minari - Em Busca da Felicidade (Minari) – EUA
Nós Duas (Deux) - França e EUA
O Globo de Ouro 2021 pode ser assistido pela TNT, emissora oficial da premiação no Brasil, a partir das 22h deste domingo.
Os assinantes do canal também podem acompanhar o evento no serviço de streaming TNT Go.
Além do site, está disponível um aplicativo para iOS e Android para quem possui o canal pelas operadoras Vivo, Claro, TVN, Cabo Telecom, Multiplay, Sky, Algar Telecom, Oi e Net.
O pré-show do evento será transmitido ao vivo no Twitter a partir das 20h deste domingo.
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Eulália Isabel Coelho é jornalista, professora de cinema e escritora
bibacoelho10@gmail.com
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