Caxias do Sul 23/11/2024

Itália: um país que resiste ao “maledetto” coronavírus

Se algo de bom podemos tirar desta tragédia, é perceber o quanto dependemos uns dos outros, mesmo que distantes e anônimos
Produzido por Evandro Fontana, 20/03/2020 às 08:18:40
Foto: ARQUIVO PESSOAL

O primeiro caso de covid-19 na Itália surgiu no norte do país no dia 21 de fevereiro. A cidade chama-se Codogno (lê-se Codonho), na Lombardia, com 16 mil habitantes. Um pacato vilarejo próximo a Lodi e parte de uma grande região metropolitana.

Quando a mídia divulgou a notícia, imediatamente fui para o mapa verificar a distância da minha casa em Milão, onde moro com a minha esposa, Sabrina, e meu filho, Pedro, de 11 anos. “Melhor que seja longe daqui”, pensei, num imediato senso de autoproteção familiar.

Cerca de 50 quilômetros ao sul. Perto. Mas como quase tudo na Itália é perto, um país de território um pouco maior do que o do Rio Grande do Sul, em que você sai de um comune e já entra em outro logo ali.

Um homem de apenas 38 anos teria tido contato com uma pessoa que esteve na China pouco tempo antes. Uma informação até hoje não confirmada oficialmente. Mas os detetives do coronavírus o rastrearam e chegaram à conclusão de que teria chegado pela Alemanha, ainda em janeiro, e depois entrado para o norte da Itália sem muito alarde.

Pessoas assintomáticas já deveriam estar transmitindo o vírus sem saber há muito tempo. No mesmo dia da confirmação, o governo lombardo bloqueou 11 cidades, porque outros casos na vizinhança começaram a aparecer. Cinquenta mil pessoas iniciavam naquele momento uma quarentena, a exemplo de Wuhan, na China.

Ninguém poderia entrar e nem sair. O governo colocou chek points com policiais armados nos acessos dos municípios. Logo, as autoridades ordenaram que museus, escolas, cinemas e restaurantes tivessem restrição de funcionamento em toda região, temendo uma proliferação rápida.

No início, pouca gente imaginou que aquele caso do "paciente um" de Codogno se transformasse numa avalanche. Inclusive nós. Todos tinham na memória as preocupações com outras viroses que geraram pânico inicial e depois sumiram sem deixar muitos rastros.

Tomamos algumas precauções, evitamos sair de casa desnecessariamente e deixamos de usar o transporte coletivo. Na mesma semana, os casos só aumentavam.

O governo central foi obrigado a decretar quarentena para toda a Lombardia e mais 14 províncias do norte da Itália, preocupado que a proliferação do vírus chegasse ao sul, mais pobre, o que poderia ser uma catástrofe ainda maior. Já eram 16 milhões de pessoas com restrição de ir e vir após a primeira semana. Mas a contagem de vítimas e o número de municípios atingidos se multiplicava rapidamente.

Na noite do dia 9 de março o Premier Giuseppe Conte, com voz firme e semblante carregado de preocupação, foi aos meios de comunicação anunciar um decreto sem precedentes na história. Todos os 60 milhões de habitantes deveriam ficar em casa. E assim continuamos.

Hoje, todas as regiões da Itália têm pacientes de coronavírus. As saídas de casa somente são permitidas em situações de extrema necessidade, como idas ao supermercado - uma pessoa por família -, à farmácia, ao médico ou para trabalhar em atividades que não possam ser realizadas em home office.

Por sorte, não se percebe até agora sinais de desabastecimento de produtos de primeira necessidade, a não ser máscaras e álcool gel. A massa está garantida por enquanto. Quem descumpre a medida de confinamento paga uma salgada multa de mais de 200 euros e ainda responde processo penal, podendo pegar até 12 anos de prisão. A liberdade num país democrático ao extremo, em que tudo é amplamente discutido com a sociedade, passava a ser restrita da noite para o dia.

A economia parou. E no mesmo ritmo do crescimento do covid-19, a Bolsa de Milão, uma das mais importantes do mundo, em sentido inverso, tombou no dia seguinte 17 por cento, o mais alto percentual de queda de sua história.

Todo o comércio foi fechado. Nem ir cortar o cabelo agora é possível. E por isso já antevejo homens com barbas e cabelos enormes ao final da quarentena, que não sabemos quando se dará, para desespero de suas zelosas esposas.

Dia após dia, muitas companhias aéreas deixaram de operar com a Itália, a ponto de um dos dois grandes aeroportos ser fechado em Milão por não ter passageiros. Nunca tinha visto isso na minha vida. Hoje, a Itália é um país sem turistas num lugar em que o turismo representa muito para a economia. Por sorte, o país aprendeu a renascer ao longo de sua milenar história. Foi assim depois das duas grandes guerras mundiais e depois da crise de 2008, para citar apenas exemplos mais recentes.

Hoje, as pessoas em quarentena vão às janelas para cantar e manter a nação unida. "Andrà tutto bene" - vai ficar tudo bem -, dizem as faixas estendidas nas sacadas. A população aplaude médicos e enfermeiros que, heroicamente, dão literalmente a vida para manter o país de pé. São heróis, mas não imortais.

Quase 3 mil operadores de saúde contraíram o vírus até aqui. Não é fácil ver uma nação tão vibrante, colorida e bela contabilizando doentes e mortos, lutando para manter a esperança a cada amanhecer. Se algo de bom podemos tirar desta tragédia, é perceber o quanto dependemos uns dos outros, mesmo que distantes e anônimos.

Pensamos sempre na Itália dos seus lagos, da gastronomia incomparável, das montanhas alpinas brancas de neve, da cidade eterna de Roma com seu Estado do Vaticano e do Papa. Também nos vêm à memória Florença com a Ponte Del Vecchio, Veneza e suas gôndolas, Nápoles e o Vesúvio, além de Milão com o imponente Duomo.

A Itália do Renascimento de Michelângelo e de Leonardo da Vinci. A Itália de Galileu, da Ferrari, da Squadra Azzurra e tantas disputas com o nosso Brasil. A Itália de seus feitos pelo mundo que ajudou a dar forma a nossa Serra Gaúcha e a seus parreirais, no sul do Brasil.

Torço ser um breve descanso para uma nova grande arrancada, como foi o boom econômico no pós-guerra do Plano Marshall. Este país, que tantas contribuições deu ao mundo, enfrenta agora uma guerra sem bombas e em silêncio. Mas conta novamente com a força do "paciente número um". Aquele da pequena Codogno, que já está melhor depois de vencer a batalha contra o “maledetto” coronavírus.

Evandro Fontana é jornalista, natural de São Marcos, de onde saiu aos 10 anos para fazer a vida em Caxias do Sul. Mora em Milão, na Itália, há um ano e meio.

e-mail: evandrofont@gmail.com