Se... neste momento de fragilidade que estamos vivendo, ameaçados por um vírus que nos obrigou a parar, a fechar as portas de nossas casas, presos à vida por um tênue fio, proibidos de beijar e abraçar nossos afetos, sob o risco de rompimento desse fio, eu fizesse um convite para recuperarmos uma vibração, uma pulsão de vida, um frisson...? Aceitaria?
Imagine-se em uma floresta, ora se perdendo, ora se achando, como num gerúndio, “...ndo”, sentidos aflorados em ações em movimento. Sinta os cheiros e perfumes, pise na relva úmida, nas folhas no chão, tome cuidado com as raízes expostas, mas não sinta medo, logo ali há uma clareira, por onde a luz e o calor do sol penetram, há muitos outros recantos assim, onde se pode parar e contemplar.
Entre luzes e sombras, também se vê filamentos de luar que atravessam pelos espaços entre as folhas das árvores. A floresta é encantada. Observe tudo o que se passa e vá vivendo, ouvindo, aspirando, tocando... Mantenha os olhos bem abertos, deixe-os afagar os detalhes, as flores, os lilases, as orquídeas silvestres, os espinheiros, os insetos, troncos e os galhos das árvores.
Enfrente os labirintos, sempre haverá surpresas. Se algum enfado se intrometer nesta aventura, pare um pouco, tome fôlego, olhe para o alto, vislumbre alguns pedaços azuis de céu que as copas das árvores permitem entrever. Tudo tão bonito como uma pintura!!
E foi assim o que aconteceu comigo, ora me “perdendo”, ora me “encontrando” na leitura da obra-prima “Em Busca do Tempo Perdido” de Marcel Proust – embrenhada nesta metáfora –, floresta encantada. André Gide (1869-1951) – amigo de Proust – afirmou que nesta floresta é onde “ficamos felizes de nos perder, vamos olhando tudo de passagem, perdemos a noção de onde estamos e seguimos as trilhas das memórias do autor”.
Marcel Proust (1871 - 1922)
“Em Busca do Tempo Perdido” – “À La Recherche du Temps Perdu”, foi escrita ao longo de quatorze anos em sete volumes. Um clássico da literatura francesa e mundial. Proust sofreu de asma durante toda sua vida, assim, após a morte dos pais, isolou-se em um quarto forrado de cortiça para concentrar-se em memórias, desejos e receios, revelações e descobertas pela procura do tempo perdido. Revelou-se um conhecedor da psicologia humana, sem ter tido conhecimento da obra de Freud, embora contemporâneos.
No primeiro volume, intitulado “No Caminho de Swann”, vamos conhecer a cidadezinha da infância – Combray – onde Marcel passa os feriados de Páscoa com os pais e recebem a visita de Swann, homem muito fino, colecionador de obras de arte e frequentador dos principais salões de Paris. Já neste primeiro volume, os conceitos de memórias involuntárias ligadas aos sentidos humanos básicos percorrerão os sete volumes da Recherche, consideradas pelo narrador como mais autênticas e reais do que as memórias voluntárias.
As madeleines e o chá
Em relação a isso, há que se retomar aqui o famoso episódio da madeleine, o bolinho que o narrador toma com chá num dia de inverno, quando adulto e, por causa dos sentidos do gosto e do olfato, ele recupera involuntariamente as memórias da infância, “... e de súbito a lembrança me apareceu. Aquele gosto era o do pedaço de madalena que nos domingos de manhã em Combray, minha tia Léonie me oferecia, depois de o ter mergulhado no seu chá da Índia ou de tília, quando ia cumprimentá-la em seu quarto. ... De onde me teria vindo aquela poderosa alegria? Senti que estava ligada ao gosto do chá e do bolo, mas que o ultrapassava infinitamente e não devia ser da mesma natureza. ... “
“À sombra das Raparigas em Flor” é o segundo volume da Recherche. Este recebeu o “Prix Goncourt” em 1919, maior prêmio literário francês. Creio que seja o mais lírico deles. Sempre com a profundidade psicológica e os parágrafos longos, porém impecáveis, narra as descobertas do amor e vivências adolescentes vividas na estância balneária de Balbec, onde conhece as “moças do grupo”.
“O Caminho de Guermantes”, terceiro volume, começa com a mudança de endereço da família do herói em Paris, para as cercanias do Palácio de Guermantes, o fascínio pela Princesa de Guermantes e as peripécias para ser aceito neste salão.
No quarto volume – “Sodoma e Gomorra “–, refere-se a essas duas cidades bíblicas destruídas pela devassidão sexual de seus habitantes. Presencia cenas que lhe darão um novo olhar para entender-se no que vivera e o que estaria por vir. Aprofunda o tema do homoerotismo.
Em “A Prisioneira” – quinto livro –, afasta-se dos requintados salões aristocráticos de Paris e se isola no apartamento dos pais com Albertine, uma das “raparigas em flor”. Toma consciência de sua doença crônica, a asma, e experiencia o ciúme que corrói, mesmo não mais existindo o amor.
“A Fugitiva”, neste sexto livro, Proust vai caminhando para a conclusão de sua obra, com reviravoltas e revelações inesperadas. Se o leitor já teve a felicidade de conhecer Veneza, as descrições dos famosos canais mescladas com as lembranças de Balbec do narrador evocarão a memória desse leitor. (Desculpe esse spoiler).
Finalmente – “ O Tempo Redescoberto” –, a sétima leitura – em que o mundo absoluto se revela, o que está do outro lado das aparências.
Por que aceitei o convite de Proust para me perder na floresta? Por que ler esses livros “curiosos”? Pourquoi?
Porque ler é erótico. Leitura dá prazer. Roland Barthes – (1915 – 1980) escritor, crítico e filósofo francês, no livro “O Prazer do Texto” é a favor de uma possível leitura erótica do texto. Temos prazer na leitura. O texto é fetiche. Pode-se ler por prazer, os textos de prazer nos contentam, nos dão cultura e euforia. A leitura flui.
Quanto aos textos de fruição, estes nos causam um certo desconforto, o leitor tem de se debruçar, o ritmo da leitura é lento, minucioso, concentrado. Nestes a leitura frui. Neste ponto, chegamos a Proust. Porque Proust é Proust.
Assim, penetrei na floresta encantada. Mas não poderia supor aonde essa aventura me levaria. Confesso que quase desisti já no primeiro volume. Insisti, e após as cem primeiras páginas, percebi que era um caminho sem volta.
Após esse estranhamento, porque há partes cansativas, entrei na “bolha”. Aí, entendi que o prazer de ler é dizível, a fruição não é. Pela leitura fui penetrando naquele universo e entendendo o tom e as reminiscências do autor, atingindo uma fruição, de usufruto, de posse.
Os longos períodos jorraram em meu ser como uma cascata de palavras – indo, voltando, relendo, anotando, por vezes me enfadando, ou rindo, intercalando com outras leituras, mas jamais ficando sem ler por dias, para não perder o ritmo. Assim que a leitura atingia a maior parte do livro, encomendava o volume seguinte para não perder o embalo.
Lembro de ter confidenciado a um amigo, Marcos Fernando Kirst, também leitor dessa obra, o fato de estar anotando em um caderno os nomes das personagens, ao que ele teria me dito – “então te prepara, porque são dezenas de personagens que se cruzam em histórias de amor, ciúmes e inveja na França da Belle Époque”.
“Em Busca do Tempo Perdido” me deliciou com as surpresas. Basicamente, são as memórias do autor, com um forte apelo autobiográfico, desde a infância até a maturidade, mas, veja bem, conta a história de vida e vidas como ele se lembra e não como realmente aconteceram. É uma experiência literária muito rica.
Esse tête-à-tête com Proust foi uma jornada e tanto, da qual me orgulho por tê-la realizado. Me tornei companheira, cúmplice de Marcel em seus sonhos e na sua procura de um tempo perdido e depois reencontrado.
Essa aventura me trouxe felicidade. Ressignificou a vida para mim. Descobri o que desejava. Encarar Proust foi uma experiência radical. Afirmo – é a melhor obra literária que li.
Se... aceitou meu convite e leu até aqui, e sentiu alguma espécie de emoção por alguma frase, alguma palavra, alguma lembrança referente a um sentido, se algo atingiu sua alma, quelque frisson, como dizem os franceses, estejam certos, caro leitor, cara leitora, de que houve “Intermitências do Coração” – a primeira ideia de título geral para a Recherche – “Em Busca do Tempo Perdido”.
Marilia Frosi Galvão, professora, escritora e cronista
E-mail: galvao.marilia@hotmail.com
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