Caxias do Sul 22/11/2024

História de Conceição da Linha Feijó

O resgate de “um documento ímpar a respeito da formação de uma comunidade na zona de imigração italiana”
Produzido por José Clemente Pozenato, 11/07/2024 às 08:51:27
José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”
Foto: Marcos Fernando Kirst

Dentro da memória dos 150 anos da imigração italiana, há um capítulo exemplar, registrado por Carlin Fabris, um colono morador do povoado de Conceição da Linha Feijó, a dez quilômetros da cidade de Caxias do Sul, num caderno de 44 páginas.

O título dado por ele a seu escrito foi este: Istoria de Conceição. Foi publicado pelo historiador Luis A. De Boni em seu livro La Merica: escritos dos primeiros imigrantes italianos, numa coedição UCS/EST, em 1977.

Sobre essa Istoria de Conceição redigi um ensaio para um simpósio da ABA – Associação Brasileira de Antropologia, realizado em Campos do Jordão, município paulista na Serra da Mantiqueira. Ela é uma Serra tão semelhante à nossa Serra Gaúcha que até pinheiros do gênero araucária enfeitam a paisagem.

Antes de se chamar Conceição, relata Carlin Fabris, o povoado se chamava Edoardina, ou Eduardina, porque as terras foram concedidas pelo governo do Estado a Eduardo de Azevedo de Sousa, antes de serem repassadas para Feijó Júnior, em troca de obras por este realizadas. Os fatos narrados por Carlin Fabris, como observa Luis A. De Boni, resultam em “um documento ímpar a respeito da formação de uma comunidade na zona de imigração italiana. Trata-se também da obra de um semiletrado e que deve ser lida com a consideração que merece um documento provindo diretamente de uma fonte popular”.

Em meu ensaio, de cunho antropológico, faço as seguintes observações:

- No texto de Carlin Fabris podem ser detectadas diversas camadas de discurso. Há uma camada mais primitiva, identificada nas passagens escritas em dialeto de tipo vêneto e que corresponde, de modo geral, a formas fixas da tradição oral. Uma outra camada reflete claramente o discurso clerical, de que o autor esteve muito próximo, como testemunha sua própria narrativa. Uma terceira camada expressa o discurso oficial da cultura brasileira, perceptível em certas formas fixas da linguagem escolar, que reflete por sua vez a ideologia positivista e republicana, como nesta passagem sobre o papel dos imigrantes: “vieram pra ter progresso e grandeza nesta nova pátria nesta bendita terra do Cruzeiro do Sul Brasil”. Um quarto e último estrato é o representado pelo discurso do próprio autor, no qual é possível ainda diferenciar duas dimensões, uma subjetiva e outra coletiva. A dimensão coletiva corresponderia a certos lugares-comuns culturais, como a afirmação de que “os antigos viviam alegres em meio as dificuldades”, mas que são assumidas pelo autor como uma visão pessoal.

- Para dar um exemplo: Carlin Fabris cita uma frase de Andrea Penaccio, que dizia: “o che se vince o pur si muore”, que se poderia traduzir por “ou se vence, ou se morre”. No contexto em que Fabris escreve, a frase é apresentada como um discurso heroico do “intrépido Andrea”, e é por ele utilizada para reforçar o caráter dos primeiros imigrantes: indivíduos que lutaram fortemente contra o destino adverso e, ao invés de morrer, venceram.

- No contexto em que Carlin Fabris escreve manifesta-se a preocupação de conciliar dois termos opostos: afirmar a diferença da cultura oriunda dos imigrantes italianos e mostrar a identificação dessa cultura com a cultura brasileira.

- Para explicar o êxito dos imigrantes na nova terra, Carlin Fabris refere qualidades trazidas como uma espécie de patrimônio cultural. Vinham da alta Itália e era “toda gente humilde, laboriosa e alegre”, recita ele.

Bem, isso é apenas uma amostra da riqueza deixada por Carlin Fabris em seu caderno com a Istoria de Conceição. Que por sua vez é uma amostra da história das comunidades rurais formadas pelos imigrantes italianos na Serra Gaúcha.

José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.

mail pozenato@terra.com.br

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