As relações de Guido Cavalcanti com Dante Alighieri têm também uma história curiosa. Dante era dez anos mais novo que Guido, e se tornaram amigos porque os dois gostavam de fazer poesia.
De mais idade, Guido era um admirador da poesia de Sordello da Goito (1.200- 1.269) nascido em Mântua, que foi trovador e jogral de várias cortes, e que escrevia em linguagem popular, ou língua vulgar, como se dizia, adotando inclusive a langue d’oc, da Provença em seus textos. Percorreu, como trovador, além de diversas províncias da Itália, também as da Provença, da Espanha e de Portugal. Tudo isso mostra que a literatura nesse período não tinha marcas de nacionalidade, uma vez que não existiam ainda as nações.
A fama de Sordello deve-se, principalmente, a seu retrato desenhado por Dante nos cantos VI, VII e VIII, do Purgatório. No Canto VI, Dante monta uma cena de Sordello com Virgílio, os dois mantuanos, se abraçando:
... uma sombra, comovida,
saiu do lugar onde se encontrava,
dizendo: “Ó Mantuano, eu sou Sordello,
da tua terra!”; e um o outro abraçava.
E nos dois cantos seguintes do Purgatório, Sordello ocupa o espaço central da cena, tal a importância atribuída por Dante à sua contribuição para a arte poética. Existe inclusive um Monumento a Dante, em Trento, com a cena do encontro de Dante e Virgílio com Sordello, numa escultura feita por Cesar Zocchi, de Florença, em 1896. E há em Mântua uma praça com o nome de Sordello.
Monumento em Trento retrata cena do encontro dos poetas
(Foto: Divulgação)
O gosto comum de Guido e Dante pelas trovas de Sordello, origem de sua amizade, não impediu que houvesse divergências políticas entre os dois. A ponto de Dante ter votado a favor do exílio do ex-amigo no Conselho de Florença.
As divergências de Cavalcanti com Dante não ocorreram apenas no campo político, mas também no da visão de mundo. E no da concepção poética. Gianfranco Contini afirma que Guido discordava da sublimação de Beatriz e de sua transposição ao plano transcendente, feitas por Dante na Divina Comédia (cf. CONTINI, G. Poeti del Duecento, vol. II, p.489).
Para arrematar seu repúdio pelo poeta que ajudara a formar, Guido Cavalcanti escreveu um soneto satírico, endereçado a Dante, onde o critica por sua vileza e por seu convívio com a mediocridade. É um soneto de rompimento público de relações, intitulado I’ vegno ‘l giorno a te ‘nfinite volte, do qual segue abaixo uma tradução:
Eu lembro muito de ti todo dia
e te encontro a pensar demais vilmente:
muito me dói por tua gentil mente
e a virtude que em ti se esvazia.
Por muitos tu não tinhas simpatia;
sempre fugias de aborrecida gente;
de mim falavas tão cordialmente
que todas tuas rimas eu recolhia.
Agora não ouso, por tua vil vida,
mostrar que o que dizes me afaga,
nem quero ir a ti, para me veres.
Se o presente soneto muito leres
o espírito nojento que te estraga
sairá talvez da alma envilecida.
José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.
pozenato@terra.com.br
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