02/02/2020. Nesta semana, tivemos uma data-palíndromo. Aquelas palavras ou frases (ou, neste caso, sequências numéricas) que, se escritas de trás para a frente, continuam carregando o mesmo significado – “Socorram-me, subi no ônibus em Marrocos”... alguém?
Em termos de idioma, exclusivamente, o português é cheio dessas pequenas possiblidades bonitas. Quando alguém morre, por exemplo, não morre, mas “passa desta para uma melhor”. Quanta gentileza eufemística!
Ou quando acontece um problema com algum pagamento, mas o balconista nos comunica que houve apenas “uma pequena questão com o sistema”. Ah! Quisera o cartão de crédito adotasse eufemismos na hora de piscar aquele grotesco aviso na tela: “Transação recusada, saldo insuficiente”.
Mas não, ele expõe sem papas na língua.
Outra coisa engraçadinha sobre a nossa língua é a possibilidade de explicar o que já é óbvio: quando saí para fora de casa para escrever este texto, chovia uma chuva inspiradora do céu até o chão. Pleonasmo, que chama?
E se eu falar que a amo e me preocupo com ela? Também seria fazer de duas formas diferentes uma mesma declaração? Reforço a ideia de novo (pleonasmo!): falar o que já foi compreendido.
O mais preocupante é não compreender e “chorar rios” por isso. Ah, mas que bobagem – ninguém chora rios, não é mesmo? Essa é só mais uma daquelas cartas na manga do bom autor, o bom e velho exagero. Aliás, hipérbole. Hiper. Não é exagero, inclusive, dizer que uma hipérbole é um extremo exagero.
Senão estaríamos ferrados quando chovesse canivete.
Continuando a incursão nas profundezas poéticas e ligeiramente afiadas do português, temos talvez o mais afiado dos artifícios. Alguém já ouviu falar em ironia? Nããão, jamais! A questão é que, do mesmo jeito que o ferreiro forja lâminas capazes de decapitar o mais bravo dos cavaleiros, uma ironia bem aplicada também pode fazer o mais gentil dos cavalheiros perder a cabeça – já que as estribeiras não usam mais.
Uma leve entonação sugestiva em contrário do que se diz pode ser um livro para o bom sommelier da língua amolada (que de mole, não tem nada). Da ironia, os familiares entendem: sempre que as tias comentam sobre a nova namorada do primo de segundo grau, é recomendável estar preparado para ouvir, em algum momento da conversa, que a moça “é um doce”.
Daqueles bem estragados.
Ariel Fedrizzi é professor de inglês. Considera-se “um curioso das palavras, apreciador da força da Língua Portuguesa para construir mundos e contar histórias”.
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