No ensaio intitulado “Batendo pernas nas ruas: uma aventura em Londres”, Virginia Woolf conta que saiu de casa para uma andança pelas ruas com o objetivo de comprar um lápis. Na verdade, uma desculpa esfarrapada para curtir o maior prazer da cidade no inverno: perambular por metade de Londres após a hora do chá.
Lendo esse ensaio, me ponho ao lado da escritora. Em alguns momentos, fico atrás. Apresso, então, o passo. É difícil acompanhá-la. Me concentro e procuro penetrar em seus pensamentos, fluxos de consciência, os quais ela reflete, na fruição de bater pernas pelas ruas de Londres. Respiro o mesmo ar (gelado) que ela e vislumbro a atmosfera fascinante de andar ao anoitecer no inverno de 1927 da Londres histórica.
Embora me sinta como se um pouco afobada, na tentativa de não perder de vista Virginia, nessa caminhada, me esforço para ver os tesouros da cidade e de seus personagens nessa aventura. Sim, aventura é a palavra. E porque Virginia tem um olho! Um enorme olho! Uma ostra de percepção, como ela mesma diz. Observo que ela não deixa passar nenhum fato que lhe tenha causado uma impressão clara.
Virginia Woolf
Se ... escapar é o maior dos prazeres, e bater pernas nas ruas no inverno a maior das aventuras, segundo ela, deduzo que, após vivenciar essa inquietação por liberdade e, ao escrever um texto sobre essa experiência, construindo em palavras o que vê, sente, e pensa, certamente ocorre algo interessantíssimo: o ato de escrever desdobra-se em lembranças e associações de fatos, pessoas, lugares, histórias e fantasias.
Virginia Woolf demonstra isso e muito mais no ensaio citado. Ela vê o extraordinário nas coisas mais simples. E o bom é que não se sai impune dessa experiência de segui-la. Ocorre um abalo profundo, pois nos obrigamos a fazer algo com o que apreendemos nesse passeio com ela. É um labirinto pleno de surpresas e impressões.
“Como é bonita uma rua no inverno, que ao mesmo tempo se revela e obscurece”, constata a escritora inglesa. Árvores nuas. Janelas iluminadas. Praças. Portões de ferro. Casas e escritórios. Ônibus. O azul e o vermelho dos buquês das flores. Virginia vê, em meio à multidão de passantes, o detalhe, o mínimo, o fiapo de conversa captado ao dobrar a esquina (uma história já toma forma em sua imaginação).
Os olhos dela são como borboletas, pousam na beleza em todas as nuances: nas possíveis histórias da anã experimentando sapatos, nas livrarias, nos dois cegos, nos trabalhadores voltando para casa, na festa na mansão, no mendigo, na velha em andrajos na porta do teatro, por onde entram pessoas da “alta”, no desentendimento do casal na papelaria em que foi em busca do lápis. Com o olhar-ostra de percepção, receptivo a tantas coisas dançando em sua mente, eu poderia jurar que ela já escreve mentalmente, ao ritmo dos passos e das palavras.
Por instantes fugazes podemos nos imaginar como fôssemos qualquer um dos personagens das ruas, com imaginação, podemos construir histórias. Por momentos apenas, pode-se ser qualquer um deles ou criar uma vida para eles.
Ah, por falar em momentos, lembrei que agora é um daqueles em que preciso, urgentemente, sair para comprar um lápis!!
Marilia Frosi Galvão, professora, escritora e cronista
E-mail: galvao.marilia@hotmail.com
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