Caxias do Sul 21/11/2024

Fissuras da alma

Acolher a dor é o grande desafio de que necessitamos empreender e aprender
Produzido por Neusa Picolli Fante, 31/07/2024 às 09:00:52
Neusa Picolli Fante é psicóloga clínica especialista em lutos e perdas
Foto: Morgane Coloda

Sentir é inevitável, dizia Clara, ao entrar em contato com tantas angústias que lhe restavam por absorver. Cair é quando se está desavisado, distraído, desprotegido de si próprio, complementava ela.

Pode-se perceber que a expectativa de não desejar mais sentir aquele desconforto é o que a deixava mais vulnerável a ele.

Nesse momento, acolher a dor é o grande desafio de que necessitamos empreender. Aliás, precisamos constantemente aprender. Isso é o que promove a mudança e que reflete em uma tranquilidade maior em seguir seu caminho.

Olhar para a dor, se permitir senti-la e reposicioná-la é a emoção em busca de ajuda e da razão, é o sentimento que se ensaia numa nova situação, é o auto acolher-se quando a vida está desafiadora.

O difícil de estar naquele instante, no agora da dor que vem te buscar, é se perder em divagações; é regredir em atrapalhações, sem coesão para sair, para se restabelecer. Do lugar seguro que está protegido, pela sua própria coerência, procura se manter.

Sabemos que muitas dores permanecem escondidas, quietas aparentemente, mas queimando internamente. Resistem na escuridão do silêncio. De um silêncio que nos remete a distanciamento, a não validação e a não acolhida. Mas, principalmente, não conseguindo vê-las ou não desejando que elas fiquem distorcendo nossos passos, elas se mantêm.

É nesse contexto que o caminho e os objetivos se perdem, que você fica num imenso vazio e necessita se reconstruir novamente, com o difícil como pano de fundo, e assim você segue.

E as lembranças penosas ficaram a se remexer no lugar onde ninguém pode ver. Enterrou aquela lembrança, no mesmo buraco no qual agora ela sai.

Na exclusão, no abandono, fui deixada de lado - dizia Ana, que, depois de algumas reflexões, percebe que se coloca como vítima perante o desamparo que sente. Percebe que “curte a dor” como ela verbaliza. Fica presa nela, segurando-a próxima para inconscientemente tirar algum proveito dela. O olhar de piedade, o cuidado amoroso, quem sabe.

Por ora ela descobriu a raiz e agora vai desvendando os caminhos que mantém essa dor amarrada nela. Essa fissura que aparece em si trincou e só assim busca se refazer. A voz de quem viveu uma difícil perda estava latente nela e necessitava encontrar um lugar para se acomodar ou, quem sabe, para desmanchar.

Sei, no entanto, que nos inúmeros lugares em que passo, muitas dores revisito. E antes de entrar no modo ilusão, do não querer ou desejar ver, antes mesmo de o destino despencar escada abaixo, preciso cuidar de mim e das minhas pendências.

Por isso, o que pode nos salvar diante da dor que emerge? Qual o fio que te salva? O fio da palavra, do pensamento, do sentir, da partícula, do movimento... tudo a se descobrir. A palavra é como fio a preencher, a se deslocar, que virá nó, que ata, desata. Preciso aprender a lidar, e prospectar uma nova direção.

Sim, diante do desamparo, perde-se referências conhecidas, fica-se encolhido procurando direções. É nesse momento que evoluir para cuidados promove, além do considerado, para que novos sentires e novas direções possa alcançar e, assim, aquele sentimento segue a se deslocar e a se transformar.

Neusa Picolli Fante é psicóloga clínica especialista em lutos e perdas. É palestrante e escritora, autora de oito livros: três de psicologia, três de crônicas e dois de poesia.

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