Este é um texto sobre ambiguidade. De que fim estamos falando?
No sentido 1, o fim tem o sentido de finalidade. A expressão “fim da literatura” diria respeito à razão de ser da arte literária.
No sentido 2, o fim tem o sentido de término. A expressão “fim da literatura” diria respeito à decadência da arte literária.
No primeiro caso, é impossível definir o fim da literatura. Como determinar a finalidade de algo que tem vários sentidos, muitas formas e diversas intenções?
No segundo caso, também é impossível definir o fim da literatura porque ela é abstrata: diferentemente dos computadores ou mesmo dos papéis em que vem escrita, a arte literária não tem prazo de validade.
Um elemento que une ambos os sentidos de “fim da literatura” é que essas coisas vêm sendo debatidas há milênios. Quer dizer (sentido 2) que antes da escrita do Apocalipse já se falava em apocalipse. E até hoje (sentido 1) não se sabe bem o porquê de as pessoas escreverem obras literárias como aquela.
Se em 2042 esse assunto segue sendo debatido é porque, em primeiro lugar, ele não tem um fim no sentido de término. E olha que pessoas bem mais inteligentes do que as gerações atuais se dedicaram a essas escatologias (outra ambiguidade) e não conseguiram fazer nada além de contribuir com mais literatura.
Em segundo lugar, quer dizer que o assunto continua interessante e até ganhou um gás, nos últimos tempos.
Taí outra expressão que merece uma conversa.
No sentido 1, “últimos tempos” significa que o mundo está acabando. No sentido 2, isso é apenas sinônimo de “recentemente”.
E aqui as ambiguidades se encontram, em poética pororoca.
De um lado, as águas profundas do fim do mundo no sentido de razão da existência neste planeta; de outro, o fim do mundo com suas águas atormentadas: a morte da vida humana na Terra… Tudo isso confluindo com os fins da literatura: de um lado as águas potáveis da polissemia e do polimorfismo que formam a arte; de outro as águas poluídas pelos leitores que preferem refri, pela inaptidão dos autores que, em vez de poços, se dedicam a poças, e a transgenia química do mercado editorial.
E tudo isso desemboca no único oceano em que cabe tudo: a linguagem.
Essa ânsia pelos fins ganhou um gás recentemente (sentido 2 de “últimos tempos”) porque não há mais utopias. Ou melhor: as distopias são as únicas utopias que restaram.
É que as distopias apresentam em si o gérmen de uma utopia. Como se fosse possível um mundo melhor, só que pra isso seria preciso começar tudo do zero. Nada de reforma, nem de revolução. Agora as pessoas sonham com a vinda de meteoros ou doenças. Que é como rezar pra Deus antecipar o Apocalipse, mas apresentando relatórios científicos.
O bom da ambiguidade é que nos livra de carregar o peso tanto das utopias quanto dos apocalipses, embora tantas vezes nos embarre as botas. Vale a pena há milênios. A ambiguidade é um recurso da linguagem que dá sobrevida às ideias. Vamos lá. A frase ambígua do dia é: “o fim da literatura é o fim do mundo”.
Paulo Damin é escritor, professor e tradutor em Caxias do Sul.
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