Eram oito horas da manhã da sexta-feira, dia sete de agosto e eu estava dirigindo pela Merritt Parkway a caminho de New Jersey para visitar um cliente. No rádio, o comentarista prolongava por demais seu apreço por algo tão americano quanto infantil em se tratando de culinária: macarrão com queijo, tão sofisticado e elaborado quanto um Nissin instantâneo.
Se por um lado o tráfego, normalmente pesado no horário em que os commuters (viajantes) de Connecticut diariamente se deslocam na direção de seus empregos em Nova York e entre os quais eu me encontrava poderia estar amenizado pela adoção de home working graças às adaptações dos regimes de trabalho devidoà pandemia do Covid-19, ao ver uma equipe removendo uma árvore da beira da estrada, e assim impedindo o uso de uma das pistas, me dei conta de que o furacão Isaias e as árvores que ele jogou nas linhas de trem durante sua passagem por aqui nesta semana acabaram colocando em seus carros pessoas que outrora fariam uso do transporte ferroviário. O furacão não teve repercussão nos noticiários porque muito mais alarmante foram os danos provocados pela expolosão no porto em Beirute.
O Dia dos Pais nos Estados Unidos, assim como em muitos outros países, já foi comemorado no terceiro domingo de junho, no entanto, as redes sociais reforçam a lembrança da data comemorativa e com ela veio o inevitável pensamento em meu pai, no Brasil.
Desprovido da proficiência natural que acaba adquirindo quem tem a experiência de ser pai, me limito a descrever a leitura que faço como observador/filho. Minha percepção de núcleo familiar é que mãe protege, irmão compete e pai desafia. E para propor e vencer desafios, por pequenos que sejam, a vida nos dá oportunidades muito além daquelas que naturalmente teríamos apenas com nossos pais e/ou filhos.
Como dedicado oportunista que sou, me resta desfrutar e experimentar os momentos que a vida me proporciona, ora indo com uma sobrinha a uma loja de instrumentos musicais para comprar-lhe seu primeiro violão, com o qual eu lhe daria suas primeiras lições de música, ora com a outra sobrinha mostrando-lhe a cena do filme Dirty Dancing em que o ator Patrick Swayze suspende no alto seu par na dança, pela cintura, e então reproduzindo a cena, eu “covardemente forte” com o peso de apenas uma criança nas mãos. Eu poderia até dizer que o desafio proposto nem é com a consciência de provocar o crescimento da criança como ser humano, é algo muito mais simples: é o sentimento gratificante de ver o brilho no olhar da criança que percebe seu horizonte de possibilidades se expandir.
Se a figura paterna para meu pai foi seu avô materno, sou grato pelo fato de meu pai ter aprendido muito bem e muito cedo que, mesmo que sejam abundantes os defeitos, há que se focar nas virtudes, e no momento oportuno, aproveitar os ensejos para proporcionar a um filho aquilo que sentiu lhe faltar de um pai.
São inúmeros os desafios a mim proporcionados por meu pai, mas o melhor, sem dúvida, foi ele ter me estimulado a estudar no SENAI, onde aprendi a manusear o osciloscópio que hoje utilizo para calibrar as fontes de energia para os hidrolizadores que abastecem de hidrogênio as frotas de ônibus e caminhões elétricos a célula de combustível com que trabalho (cabe ressaltar que tal intrumento não é estudado no curso superior que estudei e que foi imprescindível para a conquista do Green Card: Engenharia Mecânica). Da mesma forma que meu bisavô recomendou à minha avó que fizesse com que meu pai e meu tio estudassem em tal escola.
E eu seria injusto se me resumisse a citar somente os tantos desafios proporcionados e as inúmeras curiosidades despertadas em mim por meu pai entre as que foram fundamentais na formação de meu caráter, as quais frequente e exaustivamente relembramos em nossas conversas por telefone.
Visto que não tive a oportunidade de conviver com meus avôs, a análise e comparação de figuras paternas concentrou-se no material a mim disponível: a geração imediatamente anterior à minha. Ao me ver morando nos Estados Unidos chego à conclusão que talvez não por acaso as figuras paternas que levo ao pódio de meus heróis ao lado de meu pai são os meus tios anglófonos, ainda que ambos lamentavelmente tenham falhado em suas tentativas de me introduzir nos esportes: ciclismo e tênis. Veja meu pai, não foi por falta de influências, o fato de tu seres perna-de-pau no futebol provavelmente seja o fator genético e preponderante para meu pouco afinco em atividades esportivas.
O tio americano sempre esteve presente em minha vida, pelo menos desde o meu batizado que eu saiba, pois é meu padrinho. O outro tio - inesperadamente para mim, quando eu era uma criança prestes a aprender a ler - chegou de Londres e então por muitos anos moramos muito próximos ao redor de minha avó, sua sogra.
O tio chegado de Londres sempre foi para mim o cara despretensiosamente cool, que eventualmente me levava ao Clube Juvenil em Caxias para vê-lo jogar tênis e que, além de raquetes e bolinhas, ao final das partidas me dava uma garrafa de Coca-Cola gelada que eu tentava tomar no bico, imitando-o. Este tio tinha um baita, provavelmente caríssimo, aparelho de som que me permitia manusear para escutar Beatles, Pink Floyd e Queen, além disso tocava teclado e me emprestou sua guitarra, tendo sido nela que aprendi tocar quando eu era adolescente, sem falar que ele sabia manusear um estanhador elétrico, fosse para fazer instalações elétricas ou fazer vitrais.
Já o tio americano era muito disputado entre jovens de minha idade por causa do ciclismo, e num primeiro momento eu não conseguia ter sua concorrida atenção por causa de minha falta de intimidade com os pedais (de bicicleta, diga-se, já que nos de guitarra me saio relativamente bem). A admiração pelo tio americano potencializou-se ao visitá-lo depois de sua mudança de volta aos Estados Unidos. Foi uma encruzilhada muito importante tanto para minha personalidade quanto para a percepção de meu potencial no momento em que eu estava prestes a me formar engenheiro: a língua inglesa, em vez de obstáculo, poderia ser a ponte para meu crescimento profissional. É o tio que me mostrou a delícia de saber perceber e pontuar contrastes culturais e históricos: o interessante não são as diferenças, mas sim o porquê elas existem.
O mundo oferece infinitas inspirações a cada instante, através das virtudes encontradas nas admiráveis pessoas imperfeitas ao nosso redor.
Recentemente meu pai completou 81 anos de idade, e durante uma prolongada chamada de vídeo eu consegui expor para ele toda minha admiração por seus feitos em relação a mim, eu com a voz embargada, e ele tirando os óculos num esforço para conter as lágrimas acabaram tornando o desfecho da conversa tão difícil que a pronúncia das palavras decisivas acabou não acontecendo, o que eu então covarde e convenientemente aproveito para manifestar por escrito e publicamente, aqui: “Pai, tu é meu herói e eu te amo!”
* Felipe Atti dos Santos é natural de Caxias do Sul, engenheiro mecânico formado na UCS. Reside na Região Metropolitana de Nova York desde maio de 2019, onde trabalha como engenheiro de aplicação na filial americana da empresa KraftPowercon.