Não é deste século (e agora com a minha trilogia!...) a presença de italianos como personagens na literatura brasileira. Sobre este aspecto farei alguns registros e comentários, numa sequência de textos.
Esta perspectiva me parece interessante porque, nela, é possível identificar o modo pelo qual o italiano é visto e representado no universo cultural brasileiro nos últimos dois séculos, período em que sua presença é mais marcante: primeiro com os artistas de ópera e de teatro da corte imperial e, no final do século, com a imigração em massa, para diversas províncias.
Desde logo, é possível adiantar que a imagem do italiano sofre modificações, ao longo do tempo, mas quase sempre obedecendo a estereótipos de circunstância histórica, facilmente identificáveis. De um modo geral, também, é possível dizer que o tipo italiano é visto com estranheza, ou seja, ele é um tipo sempre estranho dentro do contexto brasileiro, ora visto com simpatia, ora com preconceito.
A intenção aqui é a de rabiscar uma linha de evolução histórica na composição dos personagens italianos, ou de origem italiana, na literatura brasileira, sempre buscando caracterizar o perfil que eles assumem em cada momento da história.
Começo, e não podia ser diferente, por José de Alencar.
Na sua galeria de mais de mil personagens, há um mascate italiano, no romance Til, de quem o autor não dá o nome, mas o estereótipo: ele está na beira da estrada contando dinheiro. Há outro mascate italiano em Senhora, que vende, através da grade do jardim, um pente e uma escova de dentes. Os dois romances são anteriores à grande imigração. O primeiro é de 1872 e o segundo de 1875. Isso significa que os mascates precederam os colonos...
José de Alencar e a figura estereotipada do italiano imigrante no Brasil
Em As Minas de Prata, de 1862, concluído em 1865, encontramos Cláudio Acquaviva, Geral dos jesuítas, “cujo nome, a mil léguas de distância, fazia estremecer” (não talvez por ser italiano, mas jesuíta!). Membros da família Cavalcanti aparecem em A Guerra dos Mascates, de 1873, todos eles pessoas “de muita nobreza” em Pernambuco. A família dos Cavalcanti era de Florença, como Américo Vespúcio (Vespucci, em italiano). Eram banqueiros e acharam que era bom negócio investir na produção e exportação de açúcar em Pernambuco. O mais famoso da família foi o poeta Guido Cavalcanti, de quem andei também traduzindo alguns sonetos e canções.
Em Sonhos d’Ouro, de 1872, Alencar coloca como personagem uma atriz dramática, de nome Adelaide Ristori, que existiu realmente e manteve correspondência por carta com o Imperador Dom Pedro II, durante vinte e dois anos. Todos esses nomes, dos mascates aos Cavalcanti e à Ristori, aparecem apenas como figurantes de cena.
Seu personagem italiano de relevo, com elaborada construção ficcional, é Loredano, do romance O Guarani, publicado antes de 1857, em folhetins, no Diário do Rio de Janeiro, sem registrar o nome do autor. A moda de publicar romances em capítulos nos jornais se consolidou a partir daí, na literatura brasileira, seguindo a moda europeia, em especial a francesa.
Loredano é um aventureiro, ex-frade, antes conhecido como Frei Ângelo di Luca. Aventureiro italiano, conhecido como condottiere, era o que mais havia na tradição do período colonial. Eis seu retrato desenhado por Alencar: “Um rosto moreno, coberto por uma longa barba negra, entre a qual o sorriso desdenhoso fazia brilhar a alvura de seus dentes; olhos vivos, a fronte larga, descoberta pelo chapéu desabado que caía sobre o ombro; alta estatura, e uma constituição forte, ágil e musculosa”.
Sempre que Loredano fala, o narrador destaca o seu tom desagradável e arrogante:
- “disse ele com um ligeiro acento italiano e um meio sorriso, cuja expressão de ironia era disfarçada por uma benevolência suspeita”;
- “respondeu o italiano em tom de mofa”;
- “o sarcástico italiano, com o seu espírito mordaz, achava meio de ligar a todas as perguntas do moço uma alusão que o incomodava”;
- “o italiano lançava sobre ele um olhar a furto, cheio de malícia e ironia; depois continuava a assobiar entre dentes uma cançoneta de condottiere, de quem ele apresentava o verdadeiro tipo”.
Trata-se realmente de um tipo, e um tipo que não conta com nenhuma simpatia do narrador. Na realidade, Loredano é o vilão do romance. O italiano, apodo com que Loredano é identificado, estreia mal, portanto, no romance brasileiro. Se o ficcionista sempre busca suas figuras na realidade, onde teria encontrado Alencar seu italiano típico?
O fato de ele conviver com o mundo da cultura italiana pode ser comprovado em seu folhetim semanal, publicado a 8 de janeiro de 1855, no Correio Mercantil do Rio de Janeiro. Depois de falar do clima de passagem do ano, empregando a linguagem tida por elegante na época, José de Alencar escreve:
“Minha gentil leitora, quero dar-vos as minhas étrennes [em francês, o brinde de Ano Novo], embora não vos lembrásseis de mandar-me as festas. O meu cadeau [presente, em francês] é uma notícia, que creio haveis de apreciar tanto quanto ela merece.
Com o novo ano vai continuar (ou já continuou) a ser publicado um lindo jornal italiano e português, do hábil professor Galleano Ravara. Já prevejo com que prazer acolhereis a Ïride, que, como boa mensageira, irá falar-vos a doce e rica linguagem de Tasso, de Dante e de Petrarca, e recordar-vos aquelas mágicas palavras de Romeu e Julieta, quando ouviam cantar o rouxinol e a cotovia ao raiar da alvorada.”
Pode-se concluir por esse relato que aprender a língua italiana era, na época, dentro do clima cultural implantado por Dom Pedro II, esposo de uma princesa italiana, um sinal de inserção no mundo da cultura. Haver escola de italiano e jornal em italiano exigia figuras ilustres de professores, e jornalistas. Mas, em seu romance, Alencar não avança além dos estereótipos.
José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.
pozenato@terra.com.br
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