O “olhar de fora”, cheio de estranheza com relação ao personagem italiano, comum em todo o país, será completado por um “olhar de dentro”, cheio de cumplicidade, nas regiões ocupadas pelos imigrantes vindos da Itália.
Os primeiros ficcionistas da região de imigração italiana da Serra Gaúcha mostram não apenas personagens de origem italiana, mas também a sua língua, hoje reconhecida como patrimônio nacional com o nome de Talian. O Talian não é um dialeto, mas uma soma de dialetos, mais a contribuição de elementos da língua portuguesa. O resultado foi um novo idioma, que um linguista italiano não teve receio de chamar de uma nova língua neolatina.
O precursor nesse caminho foi Aquiles Bernardi (Frei Paulino de Caxias), que imortalizou o personagem Nanetto Pipetta, em Vita e Stòria de Nanetto Pipetta – Nassuo in Italia e vegnudo in Mérica par catare la Cucagna, publicado no jornal “Stafetta Riograndense” entre 1924 e 1925. Publicou depois, no mesmo jornal, a Storia de Nino, Fradello de Nanetto Pipetta.
Aquiles Bernardi, inventor do Nanetto Pipetta
Aquiles Bernardi teve seguidores nessa vertente de literatura, que contribuiu, e muito, para fazer do Talian uma fala comum em todas as colônias, e dentro de um mesmo padrão de linguagem. Entre eles, merece citação Ricardo Liberali, também frei capuchinho, com seu Togno Brusafrati, Braúre de Dô Compari. Segundo o autor (em depoimento para a edição de 1975), a obra foi escrita com intenção pedagógica, para ensinar que a criança devia ir para a escola, não blasfemar e não entrar na maçonaria. Informa ainda que escreveu no dialeto falado em sua casa, com mistura de um pouco de português e de outros dialetos.
Outra menção especial deve ser feita do poema narrativo Os Pesos e As Medidas, de Italo Balen. Publicado bem mais tarde, em 1981, tem como tema um drama no ramo do comércio em Caxias, ocorrido quando “os anos vinte andavam pelo meio”. Balen escreve o poema na língua falada na época dos acontecimentos, e que era a língua comum da cidade, como atesta Moysés Vellinho em prefácio. E Mário Gardelin acrescentou:
“Devo dizer que, se Nanetto Pipetta é a obra básica da colonização, no mundo rural, o poema de Italo Balen, no dialeto de 1920, é a resposta urbana. Resposta feita de ternura, de trabalho, mas com aquele humorismo de um povo que, mesmo nas horas mais difíceis, sempre soube contemplar a vida através de um cintilante copo de vinho...”
"Os Pesos e as Medidas", de Italo Balen
A partir dos anos setenta, começam a surgir os primeiros romances focados na imigração italiana da Serra escritos em português. O primeiro deles parece ter sido Campo dos Bugres (1975), de Fidelis Dalcin Barbosa, que mostra o contato do imigrante italiano com os indígenas e com o meio ambiente da Mata Atlântica, onde devem construir suas casas de tábuas e fazer queimadas para as plantações.
Emyr C. Facchin, com Aldeia Colonial – Romance Regional (1983), como diz o título, desenha um painel para mostrar aos leitores um recanto do mundo ainda não objeto das atenções.
Eloy Lacava Pereira publica Arrivederci no Paraíso (1986), que põe em cena a partida dos imigrantes da Itália, sua chegada ao Brasil e as lutas dos primeiros tempos. Em Vinho Amargo (1987), o foco é a vida numa comunidade de famílias descendentes de italianos, com o lado amargo da acusação de serem quinta-colunas, no período de discriminação da Segunda Guerra.
Em Bento Gonçalves, Remy Valduga lança O Caçador de Caramujos (1985), A História de Catarina (1986) e Sonho de um Imigrante (2005). Sobre o primeiro, o poeta Oscar Bertholdo escreveu: “Em O Caçador de Caramujos, a letra se faz vinho, o vinho se faz palavra, e a palavra tecida nos trouxe um livro com sabor oral de um avô contando estórias para os netos em noite de filó”.
Waldomiro Manfroi, autor dos romances Tempo de Viver (1992) e O Último Vôo (1994), publica em 1999 o romance A Confissão do Espelho, que põe em cena agricultores e pequenos comerciantes de origem italiana vivendo num contexto cultural diversificado e complexo, em pleno período de confronto do nazi-fascismo com o nacionalismo excludente.
É nesse contexto que nasce O Quatrilho (1985), romance que dá início a uma trilogia, que eu completaria depois com A Cocanha e A Babilônia. Em conjunto, eles formam uma “trilogia étnica”, padrão que determina que seja narrada a história de três gerações, no âmbito das mesmas famílias.
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O tema da imigração italiana na ficção não se esgota aí. Para se ter uma ideia, observe-se esta relação, mesmo que incompleta, de autores e obras vinculados à nossa região, vindos à luz neste terceiro milênio:
Valmi Carneiro Elias – A colônia dos peraus: a Colona (2005).
Gustavo Guertler – A Sombra das Manhãs (2005):
Ivo Gasparin – Segredo de Pedra (2008). A Maldição do Padre (2014)
Alberto Arioli – Cabedelo, a Odisseia de uma Vida (2012).
Valdemar Mazzurana – Operários da Primeira Hora – a épica da migração italiana no sul de Santa Catarina (2012).
Dagoberto Lima Godoy – Vendetta: E não há como fugir... (2013).
Luiz Carlos Ponzi – Isabella em Contos (2014).
Dalcy Angelo Fontanive – Prisioneiro da Liberdade (2014); Velhos Tempos, Novos Ventos (2015); La Mamma (2016).
Plinio Mioranza – Marco Bortolai, o Andarilho (2015).
João Celeste Agostini – O Lagarto na Taipa – 1936 (2017).
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E o assunto não está ainda esgotado!
José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.
pozenato@terra.com.br
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