Na minha visão, a literatura brasileira da segunda metade do século XX continua sendo avaliada com instrumentos e padrões que vêm do século XIX, do período romântico-realista-naturalista e, também, do período modernista.
Essas ferramentas serviram para analisar a literatura desses períodos, mas são inadequadas para explicar e entender a literatura brasileira do último meio século. Então, a proposta que faço é de tentarmos elaborar uma nova teoria, ou novos padrões de análise, para interpretar este último período.
E quais eram os padrões de análise do século XIX e da primeira metade do século XX? Vamos nos situar primeiro nesta questão para depois entender qual a ferramenta nova que estou propondo.
Durante todo esse período, a grande questão que a crítica e a análise literária tentaram responder foi a da nacionalidade da literatura brasileira. O projeto romântico no Brasil deveria ter presente os símbolos e aspectos que mostrassem sua nacionalidade. Deveria ter o índio “no meio das tabas de amenos verdores”, deveria ter as florestas, as “palmeiras onde canta o sabiá”, para não ter mais a marca portuguesa. Por esse caminho seguiram Gonçalves Dias e José de Alencar.
No primeiro momento, nacionalidade era ter a natureza e o homem brasileiros na literatura, mas a natureza nativa e o homem nativo, isto é, a floresta tropical e o índio. Daí nasce o romance indianista e a poesia romântica da natureza: “Nossos bosques têm mais vida / nossa vida mais amores”!
Num segundo momento, já com José de Alencar, a questão da nacionalidade deriva para a questão da língua. Não basta para Alencar representar o índio e a floresta, mas também o homem urbano, do Rio de Janeiro. E com personagens que se expressem numa língua brasileira, diferente da língua portuguesa de Portugal.
Uma disputa bastante forte se estabeleceu em função disso, uma polêmica com os escritores de Portugal, principalmente, que não aceitavam essa rebeldia brasileira de criar uma literatura com língua própria, com ritmo brasileiro, com sintaxe brasileira, com vocabulário brasileiro.
Essa questão vai ser discutida com acuidade por Machado de Assis, num célebre ensaio intitulado Instinto de Nacionalidade, de 1873. Um ensaio fundamental, que deve ainda ser lido, porque não perdeu a atualidade. Ela encerra a discussão dizendo que a nacionalidade na literatura não precisa de um Sete de Setembro.
Quem vive no Brasil e produz literatura no Brasil já faz literatura brasileira. Porque a nacionalidade não precisa ser buscada, ela já está dentro das pessoas, ela é um instinto. Por isso, ela não precisa de projeto próprio. Em linguagem de hoje, se diria que Machado de Assis deu nocaute no projeto da nacionalidade literária.
Mas surgiu outra questão que gerou um novo parâmetro. O território brasileiro é extenso e com características locais diferentes entre si. Então, no lugar da nacionalidade, surge o projeto do regionalismo, ainda no final do século XIX. José de Alencar é o primeiro a distinguir dois tipos de território: o rural e sertanejo, como no romance O Guarani, e o urbano, como no romance Senhora.
Nessa mesma época, outros escritores seguiram a mesma perspectiva. Bernardo Guimarães escreve um romance ambientado em Minas Gerais, o Visconde de Taunay escreve um romance amazônico, e assim por diante. Mostrar os diferentes territórios do país passa a ser uma diretriz para a literatura do final do século XIX. É nessa diretriz que surge a literatura regionalista gaúcha, talvez a mais marcante do país, a partir da obra de Simões Lopes Neto.
Estudei bastante essa questão da regionalidade. Aliás, meu primeiro ensaio publicado foi abordando essa questão. O título é O regional e o universal da literatura gaúcha, e foi publicado em 1974. O que defendo nesse ensaio é que é importante distinguir o “regionalismo”, que é uma posição ideológica, da “regionalidade”, que deve ser vista como uma característica estética.
Mas isso já é assunto para outro encontro, ao lado do tema da etnicidade.
José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.
pozenato@terra.com.br
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