Uma chuva cai de mansinho na tarde de hoje. Os pingos escorrem pelas vidraças. Olho para fora da janela. Que lindeza! As folhas das árvores molhadas pela chuva. Os tons outonais – dos vermelhos aos cobres e ouros bizantinos – me inspiram a voltar meu olhar para outras folhas, amareladas pelo tempo, espalhadas na mesa de trabalho.
Trechos de diários de mulheres admiráveis: Zelda Fitzgerald e Anaïs Nin. Recortes de jornais. Romances de cem anos, da década de 20, do século XX, escritos por mulheres e homens – autores – chamados de loucos, de geração “perdida” que despertam minha curiosidade. Paris, no pós-primeira-guerra-mundial – foi o palco de escritores, pintores, músicos, bailarinos, de várias nacionalidades que para lá convergiram. E se enturmaram com os franceses. Foi um período único, irreverente, esfuziante, mirabolante, festas e bebedeiras, porém, muito criativo em relação às manifestações artísticas. Ah, essa orgia cultural me fascina.
Fascinantes também as situações em nossas vidas que se entrelaçam. Aí perguntamos – o acaso existe? Ou há razões implícitas que desconhecemos? Carl Jung elaborou uma teoria – tudo no universo está interligado por um tipo de vibração e que as duas dimensões – física e não física estão em algum tipo de sincronia. Assim, certos eventos isolados parecem repetidos, em perspectivas diferentes – ou – coincidências significativas.
Sou uma pessoa crente em sinais. Observo o que ocorre de inesperado, pensamentos ou imagens, sonhos, uma conversa, um encontro, um filme ou um livro que me trazem respostas. São coisas que mexem com as minhas emoções. Acredito estarmos interligados e conectados o tempo todo – presente-passado-futuro.
Na verdade, com a mente ocupada em estabelecer conexões com as leituras feitas, almejo ressignificar o porquê de tanto maravilhamento pela década de 1920. Olho para a tela branca e desafiadora do notebook. Quero fazer um registro. Me questiono a respeito das razões que me levaram a ler uma porção de livros e biografias e pesquisar sobre esses grandes personagens: Josephine Baker (a pantera negra que desfilava com outra pantera, essa de verdade), Sylvia Beach (proprietária da lendária Livraria Shakespeare and Company e primeira editora da obra Ulisses de James Joyce), Coco Chanel (a que revolucionou na moda feminina), T. S. Eliot (poeta), F. Scott Fitzgerald (autor de O Grande Gatsby – obra filmada e refilmada), Ernest Hemingway (Paris é uma Festa), Nijinski (bailarino russo), Picasso – Miró - Dalí (os nomes bastam), Cole Porter (músico), Gertrude Stein (a poderosa chefona – que dava abrigo e conselhos aos artistas e escritores)... e tantos mais... E pincei a Zelda, a Anaïs...
Dialogo comigo mesma e conjecturo – gostaria de ter vivido em Paris, há cem anos, justo nesse período. Que também era a época do jazz e da dança do charleston. O mundo das melindrosas.
Ah, as melindrosas faziam mais do que dançar freneticamente. Eram mulheres emancipadas, independentes e ativas. Eram livres para movimentar-se, saíam, dançavam, praticavam esportes, dirigiam e viajavam sozinhas. Moças da década de 1920. Libertas dos espartilhos, empoderadas pelos cabelos à la garçonne, saias curtas, muitos colares, anéis, maquiagem pesada, boca carmim, em formato de coração, enfeites e acessórios no cabelo. Amo as pequenas bolsinhas que elas usavam. Elas não eram letárgicas, eram novas mulheres, aceleradas. Nem sempre sucumbiram às pressões, eram belas e plenas de aspirações e, apesar do mundo machista, deixaram suas histórias em livros, diários, contos, moderníssimas para a época.
Nesse frenesi, me vem à mente a figura de Zelda Fitzgerald, nascida em 1900, nos EUA, um ícone da década de 1920, apelidada pelo marido F. Scott Fitzgerald como “a primeira melindrosa americana”. Foi romancista, contista, poeta, dançarina, pintora e socialite norte-americana. Ela e o marido causaram em Paris.
Há alguns dias, terminei a leitura do romance de Zelda – “Esta valsa é minha” –, escrito em um hospital psiquiátrico como exercício de tratamento, e ali a autora conta a história de sua vida romanceada. Embora escrito e publicado nos EUA em 1932, foi lançado no Brasil em 1986. No prefácio original, Caio Fernando Abreu escreveu: “Zelda escrevia para se justificar, para se compreender, para se salvar. Para orientar a si própria dentro daquele poço onde tinha caído e que, até hoje, por falta de outra palavra mais adequada, chamamos de ‘loucura’.”
Esta leitura me tocou, porque vi a personagem Zelda na vida (Alabama, no livro) como uma mulher que viveu situações restritas, em um momento de extraordinárias mudanças históricas, sociais e culturais. O mundo mudava à sua volta, mas as velhas morais em relação ao casamento e maternidade eram vigentes.
Ela fala dos anos vividos em Paris, do comportamento dos americanos, das festas, das aulas de dança ... “...o grupo se espraiou pela noite de Paris como dados jogados de um cilindro. O clarão rosa das lâmpadas de rua tingia de bronze líquido os dosséis recortados das árvores: aquelas luzes eram uma das razões por que os corações dos americanos davam saltos espasmódicos ao ouvir falar da França; eram idênticas aos clarões do circo de nossa juventude...” pág. 147.
Sinto o mesmo, Alabama, Zelda, só a menção da palavra Paris... isso me causa um frisson. Adentrei no universo de Zelda, encantador e desolador. E me indignei quando li – está explícito em diversas publicações – que seu famoso marido, autor de “Suave é a Noite” e outros, plagiou alguns trechos – de forma literal ou maquiados, dos diários de Zelda. Chocante!!! Ela foi silenciada.
Ah, os tais diários. Outros que também fizeram história são os de Anaïs Nin – escritos desde os 11 anos até o final de sua vida. Nascida em 1903, na França, foi uma precursora das lutas pela emancipação sexual da mulher. Os diários, aproximadamente 35 mil páginas, estão no Departamento de Coletâneas Especiais da Universidade de Los Angeles. Compõem um riquíssimo material para a psicologia, pela capacidade de Anaïs descrever as emoções do momento de uma mulher ao longo da vida e do amadurecimento.
No final da década de 1920, cogitou a publicação de algumas páginas, mas só o fez alguns anos após, quando conheceu o escritor Henry Miller, autor de “Trópico de Câncer” e “Trópico de Capricórnio”. Ele reconheceu o valor literário de seus diários. Tornaram-se amantes. Anaïs viveu um período intenso e dramático. Influenciada pelo estilo e vocabulário dele, ela fundamentalmente expressou sua própria voz com os registros de seu despertar para a paixão. O livro “Henry e June” relata o seu florescer sexual. A autora apaixonou-se pela escrita de Henry e pela beleza de June – a esposa dele. Esta história foi adaptada para o cinema, em 1990. Este livro foi publicado após a morte da autora, em 1980. Li o livro e recomendo o filme – a luta de uma mulher para ter um diálogo consigo mesma, assim como Zelda.
Na volta de uma estada em Paris, em 2011, ganhei de presente da amiga Carol um livro, cuja leitura me incendiou – “Os Anos Loucos – Paris na década de 1920” de William Wiser.
Assim, pude tecer uma rede de curiosidades que provocaram em mim um fortíssimo apaixonamento por esse fascinante período. E, como um fato remete a outro ...e outro... inundei minha alma com leituras, filmes, pensamentos e imaginação mergulhada nesta viagem incrível à Paris após a guerra. Olha aí a teoria das coincidências significativas.
Sincronicidade. Foi o que quis dizer. Como Zelda e Anaïs, dialogando comigo mesma, desejo ser muito mais do que aparento exteriormente. Criei um mundinho para mim. Gosto dele. Inspirações. Leituras. Além de valsas, boleros e rock and roll. Partilhar isso tudo é uma revolução.
Nessa espécie de catarse, miro a tarde que finda. Nem havia percebido, em algum momento, a chuva cessou. As árvores permitiram que mais folhas se desprendessem e colorissem o chão. Está tudo quieto. Anoitece suavemente.
Marilia Frosi Galvão, professora, escritora e cronista
mailgalvao.marilia@hotmail.com
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