Durante este período de retiro, muito do que acontece pelo mundo passa despercebido, ou é deixado num segundo plano, sem chamar muito a atenção.
Um desses assuntos eu percebi acessando o jornal francês Le Monde, do dia oito de agosto corrente. A matéria, assinada por Julien Bouissou, trata do desmascaramento do tráfico negreiro, oculto na trajetória de empresas tradicionais da Europa, em especial da Inglaterra e da França. O primeiro parágrafo já é de espantar:
“Muito antes de aparecer nas prateleiras dos supermercados, o célebre anisete Marie Brizard, nascido em Bordeaux na metade do século XVIII, enchia os porões dos navios negreiros. Ele era trocado na costa da África por escravos, levados a seguir para o outro lado do Atlântico para trabalhar nas plantações de cana-de-açúcar. O licor figurava na lista das ‘mercadorias de troca’, embarcadas nos portos franceses”.
Navio negreiro
Para quem imagina que o Brasil foi campeão mundial no tráfico de escravos, pode ser interessante conferir alguns dados dessa reportagem:
- Mais de quatro mil expedições negreiras saíram da França entre os séculos XVI e XIX.
-Somente as expedições saídas do porto de Liverpool, na Inglaterra, foram muito mais numerosas que a soma de todas as que partiram da França.
- O Banco Central da Inglaterra, O Royal Bank da Escócia e a cervejaria Greene King apresentaram suas escusas, por terem se beneficiado no passado com o comércio triangular. Nota: Comércio Triangular era o nome dado às expedições negreiras que faziam o triângulo Europa-África-América.
- “A AXA Seguros, o Banco de França, além da fabricante de licores Marie Brizard, entre outras empresas francesas, em grau menor que as britânicas, foram também beneficiadas com o comércio de escravos” (Le Monde).
Basta essa lista para dar as dimensões desse fenômeno econômico. Mas por que essa história está sendo desmascarada?
Essas tomadas de posição inéditas vêm do movimento ativista Black Lives Matter (“Vidas Negras Importam”), que teve origem na comunidade afro-americana e deflagrou um vigoroso debate no Reino Unido. Numerosos ativistas e historiadores pedem que seja reconhecido o caráter escravagista do antigo Império Britânico e reivindicam uma “descolonização” dos espaços públicos.
A “descolonização” começou depois que foi posta abaixo a estátua do escravagista Edward Colston, em Bristol, no início de junho deste ano. Outra estátua derrubada foi a do colonizador Cecil Rhodes, removida da frente da Universidade de Cap, fundada por ele. Uma outra estátua de Rhodes, na fachada do Oriel College de Oxford, foi alvo de ataque, mas “ela estava num ponto muito alto e muito bem protegida por policiais em alerta. Mas seus dias estão contados” (Le Monde).
Estátua do escravagista Edward Colston é posta a pique na Inglaterra
O papel do Brasil nessa história do tráfico negreiro é bem conhecido. Mas algumas relações entre fatos podem ser revistas. Por exemplo: o Império Britânico, depois de liderar mundialmente a prática do tráfico de negros, em especial nas Antilhas, aboliu a escravatura em 1833. Para isso, criou um fundo de indenização com quase cinquenta mil beneficiados.
Perguntas: Por que motivo o Império Britânico deflagrou a partir dessa data uma campanha mundial contra a escravatura? Qual a razão de ele ter criado um fundo de indenização? O atraso da abolição no Brasil teria sido pela falta de um fundo de indenização para beneficiar os traficantes e os proprietários de escravos?
Com o desmascaramento que começou a acontecer agora na Europa, também a nossa história talvez necessite uma revisão.
Para concluir, vamos relembrar o papel do poeta baiano Castro Alves na tomada de consciência contra o tráfico negreiro no Brasil.
Castro Alves publicou seu primeiro poema abolicionista “A Canção do Africano”, ainda em 1863, com dezesseis anos de idade. Dois anos depois, começou a escrever o livro Os Escravos, que reuniu 35 poemas sobre o escravismo. Entre eles, o mais conhecido é sem dúvida “O Navio Negreiro”, com o subtítulo de “Tragédia no Mar”. É um poema longo, dividido em seis partes. Uma delas é a que inicia com o verso:
Era um sonho dantesco...
Castro Alves, um dos primeiros abolicionistas brasileiros
Encerro com uma crônica pessoal. Vivi a emoção de entrar no Solar do Unhão em Salvador, onde está hoje o Museu de Arte Moderna. Da janela é possível ver o porto lá embaixo, na Baía de Todos os Santos, onde chegavam os escravos. Quando olhei, tive a impressão de que o poeta estava de meu lado, comentando a chegada de mais um navio negreiro. E dizendo que foram esses desembarques que o levaram a escrever seu poema trágico...
José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado "O Quatrilho", que foi adaptado ao cinema, concorrendo ao Oscar.
e-mail: pozenato@terra.com.br
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