Neste tempo de incertezas, anda todo o mundo em busca de alguma certeza. Dentro da pandemia o grau é mais agudo, mas essa é uma situação de que a humanidade nunca conseguiu fugir: o que vai acontecer no futuro é uma pergunta feita o tempo todo. É dela que surgem os adivinhos, os profetas, os filósofos, os cientistas. E também os cronistas...
Estava eu no último ano de faculdade, com toda a sabedoria dos meus 21 anos, diante da prova final de Psicologia Experimental. Havia estudado as teorias todas, dominava a terminologia técnica e enchi três páginas de papel almaço com extrema segurança. Dias depois, recebo do professor a notícia de que ficara para exame de segunda época.
Como achava ter feito uma prova excelente, fui saber dele onde tinha havido falha. Ele me recebeu mansamente e começou com esta frase: “Em Psicologia Experimental não há tantas certezas como você tentou mostrar na prova”. Engoli em seco e me preparei para a segunda época não lendo mais nada sobre psicologia experimental. Diante das novas questões propostas, tratei apenas de limitar as certezas, de dar caráter provisório às asserções e de deixar aberto o campo para outras hipóteses. Ganhei nota dez. Talvez tenha sido essa a lição mais importante de todo o meu curso de filosofia. Vivi na prática o significado da dúvida metódica de Descartes.
Dessa lição, levei para a vida um estado de alerta permanente contra o excesso de certeza, cuidando para não cair no ceticismo, que é o excesso de incerteza. Devo dizer que me fez bem essa receita, tanto para prevenir contra entusiasmos fáceis como contra pânicos igualmente fáceis.
Por incrível que pareça, em todos os campos de conhecimento o risco do excesso de certeza está permanente. A medicina, por exemplo, demonstrou cabalmente que ovos fritos eram os responsáveis pelo colesterol alto, que o café prejudicava o cérebro, entre outras crendices que logo ali adiante foram desfeitas. Nas ditas ciências ambientais, as certezas são tão grandes que se fazem profecias com data marcada para as futuras catástrofes do planeta.
Norberto Bobbio (1909-2004), cuja obra é quase toda concentrada nessa relação entre certezas e incertezas, considera que nenhum problema tem uma solução permanente. E enumera três razões para isso:
“1.Os problemas estão tão interconectados que não se pode resolver um sem que se suscite outro.
2. Não há qualquer acordo sobre os possíveis remédios que poderíamos usar: nós nos perdemos numa desorientação geral.
3. A dimensão dos problemas é tal que a solução de um único deles produz apenas o efeito de uma gota no mar.” (Elogio da serenidade, pag. 199).
Um campo onde parece haver maior crença em certezas absolutas é talvez o da economia. Os economistas tendem a garantir que lidam com uma ciência exata, em que todas as variáveis podem ser observadas, avaliadas e mantidas sob controle. O que não os impede, como observou com profunda ironia um economista francês, de chamar de “milagre econômico” um fenômeno de crescimento que fuja das certezas previsíveis.
Já houve milagre econômico brasileiro, milagre japonês e agora parece que também milagre chinês. Também quando ocorre uma crise, como a de agora, fico espantado de ver e ouvir com que segurança os economistas nos desenham o futuro se adotadas as medidas que todos eles têm certeza de que vão funcionar se forem implantadas.
O melhor remédio contra o excesso de certezas continua sendo o riso, como ensinou Rabelais no início da idade da razão. Ele falava principalmente das certezas dogmáticas, baseadas em crenças. O que ele não imaginava é que as ciências, nascidas da razão, criariam, elas próprias, seus sistemas de crença.
François Rabelais (1494 - 1553) e a teoria do riso
Para usar uma explicação da psicologia, (matéria em que fui reprovado e aprovado!), poderia ser lançada a hipótese de que é o medo, em busca da segurança, que pede a crença em certezas. E o mundo está hoje com muito medo do rumo que vão tomar nossas economias. E todo o resto...
José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.
pozenato@terra.com.br
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