As cavalgadas comemorativas da data farroupilha fizeram vir à tona da memória o quanto o cavalo fez parte de meu mundo real e imaginário. A ponto de ocupar um lugar privilegiado em minha poesia, como salientou o crítico literário Guilhermino Cesar em artigo no Correio do Povo (em 28/05/1983), citando o poema “O menino e o cavalo”. O mesmo fez outro mestre da nossa literatura, Donaldo Schüler, em sua obra A poesia no Rio Grande do Sul (1987), com esta análise:
“No motivo do cavalo, que galopa nos três livros até aqui publicados, a revolta eclode, abrindo-se em símbolo oferecido a todas as forças represadas. Resistente à corrosão do tempo, o cavalo atravessa a história, desde a penetração dos conquistadores até a exploração agrária. Mudaram os cavaleiros, enquanto o cavalo permaneceu com sua contida energia” (pag.300).
Leitores atentos e lúcidos como esses bastam para consagrar um poeta, como registra esta observação de Guilhermino Cesar: “Pozenato se firma bem, construindo um texto onde o gosto da palavra exata é caminho para a ‘obra aberta’ [...] Isto é de fato poesia”.
Dois fatos estão na base dessa minha quase obsessão pela imagem do cavalo. O primeiro foi ter nascido e vivido em São Francisco de Paula, rodeado de cavalos por todos os lados. Como hoje são oferecidos estacionamentos para carros, diante das casas de comércio, das escolas e igrejas, lá eram colocados varais para amarrar as rédeas dos cavalos.
Outro fato marcante foi o de meu pai ter prestado serviço militar no Quartel de Cavalaria de Quaraí, na fronteira com o Uruguai, onde hoje está o 5º Regimento de Cavalaria Mecanizada. Isto é, o cavalo foi substituído por transporte mecânico, mas o quartel continua sendo de cavalaria! Meu pai guardou a vida inteira duas peças de seu uniforme de soldado: as perneiras de couro lustrosas e o culote de montaria, de inspiração francesa, usado no lugar da calça ou da bombacha. Meu pai, aliás, considerava a bombacha ridícula...
Outro hábito que ele guardou da experiência no quartel foi o de dar um tratamento especial aos seus cavalos, que eram sempre de cor branca: ensinava todos eles a marchar, para não andarem a trote, e fazia neles higiene completa, aparando as crinas e a cauda e passando a escova diariamente.
Desde menino, era nesse tipo de cavalo branco que eu montava. E não adiantava eu querer fazê-lo andar a passo. Ele insistia em andar com o movimento solene da marcha. É o que digo no poema citado por Guilhermino Cesar e por ele transcrito nas páginas do Correio do Povo:
O senhor era o cavalo,
por mais atado que fosse
com cincha, freio e espora
que ele aliás detestava.
Escravo era o cavaleiro
que o cavalo levava
com ar desligado
de quem carrega uma trouxa
importuna e vergonhosa.
Ao final da transcrição, Guilhermino Cesar escreveu:
“Não posso citar o resto, mas garanto que se trata de obra-prima”.
Nunca me vangloriei disso. Como observou esse meu mestre a respeito de meu ensaio O regional e o universal na literatura gaúcha, “a Literatura, para ele, não é festividade, gala, vaidade, mas responsabilidade que se carrega com amor – de cabeça baixa”.
Essa foi uma lição que aprendi com meu senhor, o cavalo...
José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.
pozenato@terra.com.br
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