Caxias do Sul 22/11/2024

Encilhando o cavalo

Dois fatos estão na base da quase obsessão do escritor pela imagem do cavalo, que aparece em quase toda a sua literatura
Produzido por José Clemente Pozenato, 22/09/2022 às 08:45:49
Foto: Marcos Fernando Kirst

As cavalgadas comemorativas da data farroupilha fizeram vir à tona da memória o quanto o cavalo fez parte de meu mundo real e imaginário. A ponto de ocupar um lugar privilegiado em minha poesia, como salientou o crítico literário Guilhermino Cesar em artigo no Correio do Povo (em 28/05/1983), citando o poema “O menino e o cavalo”. O mesmo fez outro mestre da nossa literatura, Donaldo Schüler, em sua obra A poesia no Rio Grande do Sul (1987), com esta análise:

“No motivo do cavalo, que galopa nos três livros até aqui publicados, a revolta eclode, abrindo-se em símbolo oferecido a todas as forças represadas. Resistente à corrosão do tempo, o cavalo atravessa a história, desde a penetração dos conquistadores até a exploração agrária. Mudaram os cavaleiros, enquanto o cavalo permaneceu com sua contida energia” (pag.300).

Leitores atentos e lúcidos como esses bastam para consagrar um poeta, como registra esta observação de Guilhermino Cesar: “Pozenato se firma bem, construindo um texto onde o gosto da palavra exata é caminho para a ‘obra aberta’ [...] Isto é de fato poesia”.

Dois fatos estão na base dessa minha quase obsessão pela imagem do cavalo. O primeiro foi ter nascido e vivido em São Francisco de Paula, rodeado de cavalos por todos os lados. Como hoje são oferecidos estacionamentos para carros, diante das casas de comércio, das escolas e igrejas, lá eram colocados varais para amarrar as rédeas dos cavalos.

Outro fato marcante foi o de meu pai ter prestado serviço militar no Quartel de Cavalaria de Quaraí, na fronteira com o Uruguai, onde hoje está o 5º Regimento de Cavalaria Mecanizada. Isto é, o cavalo foi substituído por transporte mecânico, mas o quartel continua sendo de cavalaria! Meu pai guardou a vida inteira duas peças de seu uniforme de soldado: as perneiras de couro lustrosas e o culote de montaria, de inspiração francesa, usado no lugar da calça ou da bombacha. Meu pai, aliás, considerava a bombacha ridícula...

Outro hábito que ele guardou da experiência no quartel foi o de dar um tratamento especial aos seus cavalos, que eram sempre de cor branca: ensinava todos eles a marchar, para não andarem a trote, e fazia neles higiene completa, aparando as crinas e a cauda e passando a escova diariamente.

Desde menino, era nesse tipo de cavalo branco que eu montava. E não adiantava eu querer fazê-lo andar a passo. Ele insistia em andar com o movimento solene da marcha. É o que digo no poema citado por Guilhermino Cesar e por ele transcrito nas páginas do Correio do Povo:

O senhor era o cavalo,

por mais atado que fosse

com cincha, freio e espora

que ele aliás detestava.

Escravo era o cavaleiro

que o cavalo levava

com ar desligado

de quem carrega uma trouxa

importuna e vergonhosa.

Ao final da transcrição, Guilhermino Cesar escreveu:

“Não posso citar o resto, mas garanto que se trata de obra-prima”.

Nunca me vangloriei disso. Como observou esse meu mestre a respeito de meu ensaio O regional e o universal na literatura gaúcha, “a Literatura, para ele, não é festividade, gala, vaidade, mas responsabilidade que se carrega com amor – de cabeça baixa”.

Essa foi uma lição que aprendi com meu senhor, o cavalo...

José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.

mail pozenato@terra.com.br

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