Por MARÍLIA FROSI GALVÃO
Sinto uma espécie de nostalgia ao revisitar em pensamento a casa de meus pais onde nasci. Éramos oito - pai, mãe, seis filhos. Casa cheia de gente. Habitantes excêntricos. E não só. Parentes hospedados eventualmente, vizinhos, amigos e colegas de escola da filharada. Enquanto eu viver, lembrarei desse tempo nessa casa com amor e assombro. De quando descobri o bom e o ruim, o amor e a dor, as perdas e os ganhos, os medos, as alegrias, sensações e sentimentos que moldaram a minha essência.
Como fotos com ar de sépia, à contraluz, esse passado revela o efêmero. Pulsa em mim como outro coração. Memória fugidia. Esse lugar da infância me é trazido de volta por recortes. Instantâneos. Um fio invisível entrelaça as lembranças.
Guardo em mim as imagens da casa e entornos, – mãe, vou brincar no lote. A calçada de lajes rosadas, a rua, pela qual passava um automóvel, de hora em hora, as casas dos vizinhos – os Nora, os Bastian, os Rech, os Pozza, os Pigozzi... Ainda hoje persistem mistérios a decifrar. Bem o disse Virginia Woolf, escritora inglesa, ao afirmar que “... as coisas que não lembramos são tão importantes quanto as que lembramos; talvez sejam até mais importantes...”. Admito. Alguns mistérios jamais os desvendarei. Sou uma estranha para mim, ainda. E as muitas lembranças, algumas são verdadeiras, outras sonhadas, ou desejadas. Talvez, inventadas? Fragmentos de possibilidades perdidas... ou reencontradas.
Era uma velha morada de madeira... bem... foi envelhecendo conosco. Já não existe na forma material há anos. E agora um prédio de oito andares tomou o espaço. Logo ali, na Rua Guia Lopes, quase ao lado do Edifício Paraíso... Me deixo levar pelo vento da memória voluntária até chegar lá. Talvez misture uma pitada de imaginação.
Pois.
Essa casa de madeira, pintada de cor cinza, com porta e venezianas num tom mais claro ficava rente à calçada. À direita uma garagem, construída depois. À esquerda um portão, entrada secundária, por onde se ia até o lote sem entrar “em casa”. Não havia “sótio”. Em compensação, dois porões separados por uma escada, com segredos e magia. O porão do tanque! Me causava um tipo de perturbação, medo de estar lá. Esse não tinha assoalho, era de chão batido - uma espécie de adega-lavanderia. Havia o tanque, para justificar o apelido, uma mesa rústica, bacias, teias de aranhas nas prateleiras com garrafas de vinho do pai, empoeiradas. Ele buscava na colônia anualmente uma bordalesa, barril de carvalho para cem litros de vinho. Vinho sem rótulo, produzido pelos parentes da Linha Boêmia. Ele mesmo os engarrafava com meu auxílio indispensável. Por isto, eu era recompensada – ora – um “dedo” de vinho, açúcar e água nas refeições revelou-se melhor que refrigerante. Este só nos aniversários e olhe lá.
O segundo porão, aimeudeus, teve de tudo, e mais um pouco. Depósito de lenha, salames e copas pendurados nas vigas, réstias de cebolas, alhos. Roupas eram estendidas ali quando chovia. Caixas, móveis velhos, camas desmontadas, madeiras, tábuas para queimar, ferramentas, tachos... compotas, só de me lembrar de tudo isso, fico pensando no quanto eu circulava por ali, na infância e no quanto eu lembro e no quanto esqueci... este mergulho interno no inconsciente é uma vertigem, doloroso até. Como flashes, cenas vêm à mente. Mais tarde, esse porão foi reformado e meu pai “construiu” duas salas, com quadro-negro, estantes com material didático, gramáticas, dicionários, mesa em forma de um “U” e lindos banquinhos. Duas escolinhas como carinhosamente nomeávamos. As três “patrícias”, nós, as três irmãs, as Frosi, dávamos aulas particulares. Lindas histórias de aprendizagem foram vivenciadas ali.
A escada de madeira entre as portas dos porões nos conduzia à cozinha, passando por uma pequena área, com móveis em fórmica azul. No mais, por uma questão de foro íntimo, passo por cima de alguns detalhes e falo dos que me tocaram positivamente, porque objetos, móveis podem nos lembrar de fatos que nos magoaram, carregam em si uma energia má, ou não. Logo ao entrar pela porta da frente, havia uma sala grande com a televisão, telefone, rádio, mesa de jantar. Em um nível mais alto, ah, as adoráveis casas antigas e seus mistérios, havia um degrau. Assim, um extenso degrau nos levava a uma sala menor, com o célebre conjunto de sofás – o de três lugares, (cúmplice fiel dos namoros) e duas poltronas, três quartos, um corredor entre eles, banheiro, móveis simples. Os móveis da sala, mesa e cadeiras com palhinha e uma cristaleira com os presentes de casamento dos pais. O destino desses móveis, eu o ignoro. Como gostaria de tê-los comigo.
Enquanto eu viver, os encantamentos continuarão, marcados pelos sentidos, quebrando algumas janelas para chegar ao significado, para respirar. Desde que me lembro de ser gente até hoje, na maturidade, mantenho esses encantamentos. Diversos deles despertados e materializados pelo cultivo de árvores no pequeno terroir – terreno que existia atrás da nossa casa. Brotou, desabrochou e cresceu em meu espírito, aos poucos, às vezes de maneira inconsciente, essa sensibilidade para o belo da natureza. O lote!! Era um pequeno paraíso cercado por muros baixos e cercas de arame nos fundos da casa. Quem passasse pela rua, não poderia imaginar o que continha ali, atrás da casa cinza, uma pequena árvore na frente, apenas.
Aham! Guardo em mim, em meu segundo coração, os fragmentos de descobertas e pequenas felicidades. Como meu pai teve suas origens na colônia, filho de imigrantes italianos, aprendeu desde cedo o cultivo e o amor pela terra. Lembro com carinho e saudade do pai. Homem bom, do bem, cuja assinatura era “o fio do bigode”. Homem bonito, forte, olhos azuis e bonachão. Um galã – verdade! Parecido com o Paul Newmann. Ou vice-versa. Pois, o pai me ensinou a amar a natureza, as árvores, as frutas e as flores. Me dava explicações sobre o que plantava, em uma linguagem tão peculiar- uma mistura de dialeto italiano com português temperados com neologismos incríveis. Ele inventava palavras!!!
Usufruíamos, pela dedicação dele, de um parreiral, colhíamos as uvas pela janela da cozinha. Uvas rosadas e brancas. Ah, e uva Izabel. A preferida da Olguinha, nossa mãe. Duas pereiras – pera-pau (não era boa, como o nome diz) pera d’água – hum-hummm. Limeira. Laranjeiras. Ameixeiras. Pessegueiros. E os figos – com a gotinha na ponta!! Comia-os sentada em um dos galhos da árvore. Nunca mais comi figos tão saborosos e doces quanto aqueles. Um abacateiro enorme. Muitos abacates. Dona Olga punha-se à janela da sala de casa com cestos desses frutos e os oferecia às pessoas que passavam por ali. Quantos amigos ela conquistou! Só o fato de ela estar à janela, com ou sem abacates, atraía as pessoas, que paravam para conversar com ela, e daí surgiram amizades duradouras. Lembro dos moranguinhos, que a gente esfregava na roupa e comia direto. Radicci pissacán. Esse desprezado por nós. Hoje é uma iguaria para os gourmets. Salsa. Cebolinha. Sálvia. Arruda. Samambaia.
Havia também um caquizeiro. O pai fez um enxerto de duas espécies – cáqui-chocolate e outro cáqui de polpa macia. O resultado foi que, aquela enorme árvore cresceu conosco, com os galhos pesados pelos frutos, quase tocando o chão, dava três tipos de fruto - os “puros” (ou chocolate ou de polpa amarrenta – esses só podiam ser comidos bem maduros), e um terceiro tipo, híbrido, super delícia, misturado. A fruta do outono. Ah, havia um limoeiro. Me encantava a grama salpicada de pétalas das pereiras, dos pessegueiros, das laranjeiras. Me surpreendiam os lírios cor-de-rosa que sumiam quase o ano todo e, no final do inverno apareciam. Pluft.
Pois é. A casa da Guia Lopes me marcou para sempre. Como esquecer o silêncio de uma noite de lua cheia com o perfume das laranjeiras no ar? Colher moranguinhos? Ficar embaixo de uma árvore depois da chuva e sacudi-la sobre si mesma e sentir os pingos no rosto? E aquele dia em que amanheceu com neve cobrindo tudo? O lote parecia um reino encantado. E quando fizemos saquinhos de papel e abrigamos os pêssegos um a um para que não ficassem bichados? E quando subi tão alto na pereira e chorei porque fiquei com medo de descer? Ah, e as inúmeras vezes em que eu sumia, com um livro para ler, escondida entre os galhos de uma ameixeira? E os bicharocos? Caracol. Sapos. Aranhas. Lagartixas. Tatuzinhos. Borboletas. Joaninhas e besouros. Pintinhos. Galinhas. Uma cadelinha – a Luluzinha.
Não o sabia conscientemente, hoje percebo o quanto amava o efêmero. Ainda amo. Ainda mais. Acompanhei as estações no lote. Os dias. As noites. Os frutos sazonais. As figadas feitas no tacho de cobre, com fogo embaixo. Os agnolinis da mãe, enormes, deliciosos, três deles enchiam o prato de sopa, quase tudo era feito em casa. O churrasco aos domingos. Lembro que o pai temperava a carne com uma salmoura, um maço de temperos verdes respingados “por sobre”. Parece estranho, mas era gostoso. D. Olga, nossa mãe, fazia uma maionese dos deuses, feita a mão, com aquelas gemas dos ovos das galinhas criadas livres. O pão feito em casa. Quantos cheiros e sabores impregnados em mim...
Como não lembro de tudo, não falarei dos cafés da tarde na Guia Lopes, onde, segundo meu irmão Sérgio, era a Estação Rodoviária de Caxias. Por diversos motivos, a casa abrigava as pessoas, os parentes, vizinhos. Eram encontros diários. Adoráveis.
Há coisas comuns entre meu presente e meu passado, elas existem dentro de mim. Penso que as recordações que tenho, das mais remotas até a de um minuto atrás, são tão singulares, tão pessoais, assim como cada indivíduo tem os próprios mistérios da subjetividade.
E olha só, nem falei de outras emanações da infância, das bonecas, da vez em que, sem querer, claro, fiz por quebrar uma peça importante da máquina de costura ao costurar as cinco-marias, plenas de arroz; da vez em que, ao chegar da escola, soube do atropelamento da Luluzinha, minha guaipequinha. Soluços com a cabeça enfiada entre o rádio e a parede.
E também nem falei de meus amados irmãos, da Loiva que me alfabetizou antes que fosse à escola, era a culta e inteligente irmã que nos aconselhava, da Nena (Lorena), que um dia foi andar de carrinho de lomba e rasgou o vestido verde de bolas (petit pois), sempre companheira e amiga de todos, até os dias de hoje; do Sérgio, bonito demais, tipo Alain Delon, pele bronzeada, olhos verdes, alto, “Adonis”, era o que diziam e eu não entendia o que era. Fui cúmplice dele muitas vezes, quando as garotas não apreciadas o perseguiam, ele entrava pelo portão e me mandava dizer pela porta que ele não estava; do Flávio, penso que ele deve ter nascido com uma bola nos pés, tal a paixão por futebol, e muitas medalhas conquistadas nesse esporte; do Biba (Hamilton) irmãozinho menor, tinha uma galinha de estimação, a Mitcha. Ele andava por tudo com ela debaixo do braço – e ela parecia adorar. Às vezes ela o procurava. Tadinho, jamais esquecerei o desespero dele – quando a encontrou morta com a cabecinha presa no vão de dois tijolos. Que perigo ciscarmos onde não devemos. O que será que havia lá no fundo que ela deu a vida por isso? Mistérios.
Também não contarei do meu romantismo adolescente, dos livros que me marcaram, do diário de poemas (??) escritos por mim, dos namoradinhos, das serenatas, das buzinadas da lambreta de um deles cada vez que passava pela rua, dos lindos buquezinhos de violetas, amarrados com uma fitinha. Como cheiravam bem. As de hoje, ou perderam o perfume ou eu perdi o olfato?
Esse breve relato, meio desconexo em relação a um tempo vivido, que passou, se torna presente pela memória. Há silêncios, ausências, tenho a forte impressão de que a Virginia Woolf esteja certa. Talvez, o mais importante de tudo esteja no não dito, no que o inconsciente nos revela de forma ressignificada. Memorabília emocional. Presentes do passado.
Marilia Frosi Galvão é professora, escritora e cronista
galvao.marilia@hotmail.com