Por Eulália Isabel Coelho
Naquela noite, a sala ficou ainda menor no pequeno apartamento de um quarto. Enrodilhada no sofá, olhos esgazeados, vi as perturbadoras cenas do Overlook Hotel que, muito mais do que um espaço físico, pareceu-me uma furiosa entidade. Tudo aquilo era fruto do isolamento ou do sobrenatural? O confinamento, claustrofóbico por si só, daria conta de tanta paranoia? O fato é que o hotel tinha significado de casa - emprestada, mas casa -, considerada unidade, refúgio, proteção. Pelo menos, deveria ser.
Apesar dos prenúncios do que viria, nada me preparou para as diferentes camadas de tensão de “O Iluminado” (1980), de Stanley Kubrick. O despreparo não se justificava, afinal a obra era inspirada em livro homônimo de Stephen King, um dos maiores autores da literatura de terror. Contudo, foi assim desprevenida que no ventre da noite “O Iluminado” arrancou-me certezas, estendendo sobre minhas crenças lençóis de medo. Estar sozinha na pequena sala correspondia a estar presa no Overlook, morta de pavor junto ao pequeno Danny.
O retorno do personagem às telas acendeu-me expectativas. Baseado no romance “Doutor Sono”, de King, lançado em 2015, o filme é sequência de “O Iluminado”. Através dele descobrimos o que aconteceu a Danny depois da traumática vivência no Overlook, aos 5 anos. Essa premissa foi suficiente para eu reprisar o cenário daquela noite. Sentei-me ao sofá, agora outro em outra morada. Gatos em volta, preparei-me para uma dose brutal de adrenalina. Mas “Doutor Sono” não me sacudiu, não me pôs em alerta, não estendeu sobre mim o velho lençol do medo.
Danny criança em "O Iluminado"
O filme, dirigido por Mike Flanagan (“Ouija, a origem do mal”, “A maldição da Residência Hill”), que também assina o roteiro, decepciona. Não temos aqui, e nem preciso dizer, a grandiosidade de Kubrick que, para além da estética fílmica, quebrou clichês do gênero. Flanagan não é um virtuose e sabe disso. Logo, escolhe reverenciar Kubrick com tomadas, ângulos e movimentos de câmera icônicos de sua obra-prima. Se isso torna o filme atraente? Sim!
Ao homenagear o mestre, Flanagan fica em uma encruzilhada, pois quer também agradar Stephen King. Como se sabe, o escritor odeia a versão kubrickiana de “O Iluminado”. Flanagan se coloca na posição de mediador ao pretender um equilíbrio entre as duas vozes, a do cinema e a da literatura. Para isso, anula a sua própria. Mesmo com percalços, “Doutor Sono” nos leva a algumas leituras interessantes e merece ser visto.
Em “O Iluminado” temos a claustrofóbica ambientação do Overlook Hotel. O local aparece como cerne, estrutura psíquica que envolve a família Torrence em sua gradual desestruturação. Nessa perspectiva, real e irreal se complementam e fica difícil saber onde começa um e termina o outro. Se é que há essa divisão. O interior da casa/hotel deveria ser repositório de afetos, mas torna-se invólucro de temores. Danny circula pelos corredores inocentemente e pagará o preço por tamanha distração.
Em “Doutor Sono”, é a variação de territórios que se apresenta desfocando nosso olhar do que é uno. Não estamos dentro. Flutuamos sem redoma protetora. Essa motilidade tem a ver com o propósito de externar uma incômoda verdade: o perigo anda à solta inclusive onde não se imagina. Existem iluminados por aí e a gente nem percebe, e eles, na maioria das vezes, escondem seu dom. O mundo está faminto do que seja luz é uma das mensagens de King. Outra é, apesar disso, brilhe!
Ewan McGregor é Danny adulto
Temos aqui o antagonismo do dentro (o hotel com seus quartos e corredores) e seu entorno dramático (neve, escuro, labirinto) e do fora, o que está em aberto e se oferece facilmente. Ir de um lugar a outro, de uma cidade à outra, locomovendo-se fisicamente ou de modo telepático, contorna a dificuldade de comunicação. Tudo, em “Doutor Sono” pode ser alcançado. Seja intuitivamente, seja retomando caminhos já percorridos.
Danny traz consigo um pedaço do Overlook em seu DNA, assim como carrega o de Jack, seu pai. Ele é a soma do que tenta anular, seu dom paranormal, e do que quer esquecer, o trauma. Os dois forjaram seu ser e, no final das contas, não há como escapar. Embora passe a vida fugindo dessa verdade, Danny sempre é alcançado por ela. Está à sua mercê. O adulto nele é vítima da criança assustada caçada pelo pai e que vê a mãe igualmente ameaçada, tentando salvá-lo.
A vida adulta não foi complacente com Danny, ao contrário, está sempre a esmagá-lo, disposta a retirar dele o máximo de seu tênue brilho. Ainda que tenha sido sua decisão escondê-lo, as circunstâncias o levam de volta ao que tanto o perturba. Será necessário mais do que lidar com essa questão, resolvê-la. Enfrentar seus fantasmas, sem interdições, aceitando-os finalmente. Se não há como extirpá-los, que o sobrenatural assuma seu posto. Chegou a hora de arriscar-se.
Danny em sua saga também foi coberto pelos lençóis do medo. Esses tecidos utilizados para amenizar temores, ainda que de seda ou outro material nobre, precisam ser afastados, porque precisamos do enfrentamento. Danny aos poucos vai colocando a cara para fora, vai se desvencilhando do lençol e de sua suposta proteção. Quando o deixa cair, ergue-se nele a aceitação. Danny cresce quando decide crescer. Ser adulto requer certas habilidades. E, nessa jornada, ele não está sozinho.
Assim, temos três núcleos narrativos em “Doutor Sono” que irão se interconectar:
1. Danny Torrance (Ewan McGregor), luta contra o alcoolismo (mesma doença do pai) e fechou seu brilho em função do traumático sofrimento da infância.
2. Rose The Hat (Rebecca Ferguson, em atuação memorável) é líder de uma “seita” que se autointitula “O Verdadeiro Nó” e que caça iluminados para se nutrir do seu brilho.
3. Abra Stone (Kyliegh Curran), adolescente cujo dom é similar ao de Danny na infância, porém mais forte, e que ainda está descobrindo seus poderes.
Rebecca Ferguson é Rose The Hat
Esses núcleos são mostrados didaticamente, um a um. É uma espécie de abecedário do diretor, enquanto nos joga no campo explícito do Bem e do Mal. Flanagan, preocupado demais em explicar, se atrapalha e não deixa brechas para a nossa imaginação. Entrega tudo e esse tem sido, em certa medida, um mal do cinema contemporâneo. De qualquer forma, o capítulo final o redime. Para chegar lá, é preciso paciência.
Kyliegh Curran é a iluminada Abra Stone
Curiosidades
O diretor de “Doutor Sono” teve acesso ao espólio de Stanley Kubrick (1928-1999) que contém as plantas do hotel criadas por ele. Os arquivos do cineasta foram doados pela família ao London College of Comunnication em 2005.
A família Torrance em “Doutor Sono” tem atores bem parecidos com os de “O Iluminado”:
O menino Roger Dale Floyd é Danny, interpretado em 1980 por Danny Lloyd.
Alex Essoe dá vida a Wendy, papel que foi de Shelley Duvall.
Henry Thomas surge como Jack Torrance, personagem que foi de Jack Nicholson.
Chris Evans (Capitão América da franquia “Os Vingadores”), Dan Stevens (“O Hóspede”, 2014) e Jeremy Renner (“A Chegada”, 2016) foram cotados por Mike Flanagan para interpretar Danny adulto.
Stanley Kubrick rejeitou roteiro de Stephen King para “O Iluminado” por achá-lo fraco em termos de escrita cinematográfica. Talvez venha daí um pouco da rusga entre eles. Sabe-se, também, que o escritor não gostou da escolha de Jack Nicholson para viver Jack Torrance.
Robert De Niro e Robin Williams foram considerados para o papel de Jack Torrance. Kubrick achou De Niro pouco psicótico, depois de assisti-lo em “Taxi Driver' (o quê?!) e Williams psicótico demais em Mork e Mindy (sitcom de 1978 com quatro temporadas na rede norte-americana ABC)
Eulália Isabel Coelho (Biba) é jornalista, professora e escritora
e-mail:bibacoelho10@gmail.com
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