O poeta Jorge de Lima, alagoano, autor do monumento épico-lírico intitulado Invenção de Orfeu, escreveu um poema sobre o inverno. O inverno que ele avistava mudando as cores da Serra da Barriga, para a qual escreveu também versos saudosos:
“Serra da Barriga!
Te vejo da casa em que nasci.”
Seu poema sobre o inverno nordestino, onde a neve nem chega perto, e tem a chuva como sinal de sua chegada e presença, começa assim, em ritmo de dança no terreiro:
“ZEFA, chegou o inverno!
Chuva e mais chuva, Zefa!
Vai nascer tudo, Zefa!
Vai haver verde,
verde do bom,
verde nos galhos,
verde em ti, Zefa,
que eu quero bem!”
Já o meu poema sobre o inverno vivido na Serra Gaúcha contrasta frontalmente com o de Jorge de Lima. No dele, tudo fica verde. No meu, tudo fica branco. E com outro ritmo. Não resisto à tentação, neste quase início de junho, com o frio já batendo na porta com toda força, de mostrá-lo às minhas leitoras e aos meus leitores.
Junho, solta-se o vento assobio,
de lambada cortante, repontando
para dentro o que disperso estivera:
o gado no coberto, e o cavalo;
o pessegueiro reflui em si mesmo,
a pastagem para dentro do chão;
também o homem vai para dentro
da casa, e para dentro de si.
Se antes o viras cheio de rompante,
agora discorre em silêncios compridos;
se antes sua língua adaga feria,
ora em mel se dissolve, língua favo.
Mesmo o ódio sai entredentes
semelhando oração murmurada.
E se prestares ouvido, ouvirás
que está ele sempre falando, dentro.
E sua vida toda brota, a mais funda,
e escorre, lenta, pelos olhos baixos,
pelo gesto parado, pelos lábios
mal apenas movidos sob os bigodes.
Em fogo se tempera o ferro, metal;
em gelo o homem, e o pessegueiro:
a casca endurecida, em defesa
à elaboração íntima, de retorta,
que pelo silêncio e asperezas
pareceria de ódio retrabalhada.
E se o vires num poncho enrolado
semelhará a cobra na toca,
o veneno refinando, em si guardando:
melhor é não tocar na pele fria.
Ninguém poderá saber, sabido,
o que destila o coração retorta:
se mel, se veneno, ambos bucais
mas só provados depois de cuspidos.
Sabendo as manhãs, nenhuma é branca
como no inverno: branco rebuscado
de cristais, rendas, vestidos de noivas
ou bem de batizado, de batismo.
O inverno é reconcentrado: tem ritos
de purificação, com vestes alvas,
árvores penitentes, despojadas,
penitência com requintes de frio.
Dois invernos bem diferentes, não é mesmo? Isso é Brasil!
José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.
pozenato@terra.com.br
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