Caxias do Sul 22/11/2024

Dois invernos bem diferentes

A estação do frio alterna nuances verdes e brancas sob as penas de dois poetas distintos
Produzido por José Clemente Pozenato, 26/05/2021 às 14:51:00
Foto: Marcos Fernando Kirst

O poeta Jorge de Lima, alagoano, autor do monumento épico-lírico intitulado Invenção de Orfeu, escreveu um poema sobre o inverno. O inverno que ele avistava mudando as cores da Serra da Barriga, para a qual escreveu também versos saudosos:

“Serra da Barriga!

Te vejo da casa em que nasci.”

Seu poema sobre o inverno nordestino, onde a neve nem chega perto, e tem a chuva como sinal de sua chegada e presença, começa assim, em ritmo de dança no terreiro:

“ZEFA, chegou o inverno!

Chuva e mais chuva, Zefa!

Vai nascer tudo, Zefa!

Vai haver verde,

verde do bom,

verde nos galhos,

verde em ti, Zefa,

que eu quero bem!”

Já o meu poema sobre o inverno vivido na Serra Gaúcha contrasta frontalmente com o de Jorge de Lima. No dele, tudo fica verde. No meu, tudo fica branco. E com outro ritmo. Não resisto à tentação, neste quase início de junho, com o frio já batendo na porta com toda força, de mostrá-lo às minhas leitoras e aos meus leitores.

Junho, solta-se o vento assobio,

de lambada cortante, repontando

para dentro o que disperso estivera:

o gado no coberto, e o cavalo;

o pessegueiro reflui em si mesmo,

a pastagem para dentro do chão;

também o homem vai para dentro

da casa, e para dentro de si.

Se antes o viras cheio de rompante,

agora discorre em silêncios compridos;

se antes sua língua adaga feria,

ora em mel se dissolve, língua favo.

Mesmo o ódio sai entredentes

semelhando oração murmurada.

E se prestares ouvido, ouvirás

que está ele sempre falando, dentro.

E sua vida toda brota, a mais funda,

e escorre, lenta, pelos olhos baixos,

pelo gesto parado, pelos lábios

mal apenas movidos sob os bigodes.

Em fogo se tempera o ferro, metal;

em gelo o homem, e o pessegueiro:

a casca endurecida, em defesa

à elaboração íntima, de retorta,

que pelo silêncio e asperezas

pareceria de ódio retrabalhada.

E se o vires num poncho enrolado

semelhará a cobra na toca,

o veneno refinando, em si guardando:

melhor é não tocar na pele fria.

Ninguém poderá saber, sabido,

o que destila o coração retorta:

se mel, se veneno, ambos bucais

mas só provados depois de cuspidos.

Sabendo as manhãs, nenhuma é branca

como no inverno: branco rebuscado

de cristais, rendas, vestidos de noivas

ou bem de batizado, de batismo.

O inverno é reconcentrado: tem ritos

de purificação, com vestes alvas,

árvores penitentes, despojadas,

penitência com requintes de frio.

Dois invernos bem diferentes, não é mesmo? Isso é Brasil!

José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.

mail pozenato@terra.com.br

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