Desde que Méliès, em 1902, resolveu contar em filme a história da Cinderela, e Griffith, em 1915, levou para as telas O nascimento de uma nação, iniciou-se no cinema a caçada em busca de narrativas. Elas foram perseguidas no lendário popular, nas notícias de jornal, nos faits divers, nas memórias individuais e coletivas, na História, na Bíblia, no teatro e, não poderia ser diferente, no romance.
Até porque o romance, nascido num caldo cultural semelhante ao do cinema, parecia oferecer um tipo de narrativa já próximo do modelo da narrativa cinematográfica, desde que feita a devida adaptação. E desde então existe, também, uma discussão jamais concluída sobre quais devam ser as relações entre romance e filme. Se toda tradução já é uma traição, o que dizer de uma adaptação?
Um estudioso do problema, Alain Garcia (ver L’adaptation du roman au film – Diffusion, Paris, 1990), caracteriza pelo menos três modos de adaptar um romance para o cinema: a adaptação propriamente dita, a adaptação livre e a transposição. Esses modos são, na realidade, três graus diferentes de proximidade da narrativa original, sem que em nenhum deles se possa falar em fidelidade.
Adaptar é já ser infiel em algum grau. Adaptar, diz Henri Lemaître em seu dicionário de Literatura Francesa, “é uma operação que consiste em recompor uma obra em um modo de expressão diferente do original: o filme Le rouge et le noir de Claude Autant-Lara é uma adaptação cinematográfica do romance de Stendhal mantendo o mesmo título (...)”.
Vivi de perto essa experiência na adaptação do romance O quatrilho. Antônio Calmon, experiente cineasta e roteirista, autor do chamado primeiro tratamento antes do roteiro, me fez este comentário: desse romance é possível fazer quatro filmes diferentes, vamos ter que escolher um. Nem mesmo o título estava garantido (durante a produção, chegou a ter o título secundário de “Trocando Corações”).
Duas cenas do roteiro final (assinado por Leopoldo Serran), e das mais fortes do filme, não aparecem no romance. Uma delas é quando o personagem Gardone desmancha e queima a cômoda que era a imagem visual da relação de sua mulher com o outro. E a cena dramática da personagem Pierina enfrentando o padre diante dos fieis também foi “transposta”. No romance, toda a fala da Pierina é dita na sacristia, aos sussurros, tendo apenas o sacristão como testemunha.
"O Quatrilho" foi filmado na Serra Gaúcha em 1995
Nos dois casos, o roteiro encontrou uma forma de expressão característica do cinema: aquela em que a narrativa entra pelos olhos, literalmente, e de forma espetacular. O que mostra que o dilema do romancista, de colocar com palavras a cena diante do leitor, está no sentido inverso do dilema do cineasta: como apenas sugerir, à maneira do romance, com imagens escancaradas na tela?
No Brasil o cinema não teve a dimensão que teve nos Estados Unidos, onde a produção de seriados sobre o mesmo tema e suas variações, ao lado das superproduções, serviu de base para uma verdadeira indústria do entretenimento. Aqui, como acontece também com o romance, o cinema foi encarado como obra de arte, nunca como um produto industrial.
Assim, a demanda por narrativas para alimentar uma produção em grande escala, nunca se fez sentir. Os ciclos do cangaço ou da chanchada foram os que mais próximos estiveram dessa situação, sem nunca terem de fato se consolidado.
Nesse contexto, a produção de roteiros com base no “roteiro” de um romance, aparentemente pronto para ser transposto, parece de fato o caminho mais acessível para o cinema. O mais acessível e também o mais limitador. Como romancista, posso dar a impressão de estar dando um tiro no meu próprio pé ao sugerir que o cinema vá buscar narrativas fora do campo das narrativas literárias. Mas, se é verdade que em alguns casos a adaptação para o cinema projeta o romance junto ao público, como de fato sucedeu com O quatrilho, na maioria das vezes ocorre o contrário.
Mais de um romancista lamentou a versão dada ao seu texto no cinema. E isso ocorre por uma razão fundamental. Como diz Milan Kundera, há coisas que só o romance consegue dizer, e não adianta querer fazer isso com outra forma de expressão. Por justiça, deve-se dizer também o inverso: há coisas que só o cinema consegue dizer. E não é o fato de uma narrativa na forma de romance ter obtido força e consistência que vai assegurar que o mesmo vá acontecer com essa mesma narrativa posta no filme.
Para arrematar tantas provocações, vai mais uma. O romance nasceu como um produto industrial, veiculado em folhetins, com o objetivo de ajudar a vender jornais e revistas. O tempo e outras circunstâncias terminaram por lhe dar aura de obra de arte. Com o cinema não foi diferente. As primeiras fitas eram exibidas em barracas de circo, para diversão do grande público. Nos filmes mais recentes, essa dimensão circense foi retomada, com a exploração dos chamados efeitos especiais.
O cuidado artístico deve existir, seja no romance, seja no cinema. Mas sua principal função social, como formas da cultura de massa, deve ser a capacidade de atrair o público leitor e/ou espectador com representações que alimentem e diversifiquem a visão geral de mundo de que todos precisam.
José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado "O Quatrilho", que foi adaptado ao cinema, concorrendo ao Oscar.
pozenato@terra.com.br
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