Caxias do Sul 21/11/2024

Dezesseis horas de Gravataí a Torres

Segue o relato da saga do Cônego Donato em viagem de caminhão de Caxias a Santa Catarina, em 1937
Produzido por José Clemente Pozenato, 22/08/2024 às 13:42:58
José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”
Foto: Marcos Fernando Kirst

Na manhã do segundo dia de viagem, saindo de Gravataí, depois de uma noite de pouco sono por causa dos mosquitos, o Cônego Angelo Donato teve de embarcar no caminhão contra a vontade, segundo seu relato:

No dia 8 levantei cedo, todos queriam partir logo e não me deixaram celebrar a missa. Partimos antes do nascer do sol. No caminho que conduz a Santo Antônio da Patrulha encontramos na estrada muitos trabalhadores que preparavam a faixa de concreto que, como entendi, querem que chegue até Conceição do Arroio. Mas ainda vamos ter que esperar muitos anos até que esteja terminada.

Conceição do Arroio já havia mudado o nome para Osório três anos antes, em 1934. O Cônego Donato usa os dois nomes, sem os diferenciar.

Seu texto segue fazendo comentários sobre a má qualidade da estrada coberta de areia. Além disso, o caminhão, “que podemos chamar de carcaça velha”, tinha de ir parando para trocar a água do motor que fervia como uma caldeira. Depois das 11h, cinco horas depois da saída de Gravataí, chegaram a Santo Antônio da Patrulha, mas não entraram na vila, seguindo viagem até Conceição do Arroio, onde chegaram “meia hora depois do meio-dia, e paramos para refocilar o nosso estômago”

Pelas duas horas da tarde continuamos nossa viagem, com o veículo fazendo suas paradas de costume, e chegamos pelas 4 horas a Tramandaí, que é um distrito de Osório, bastante populoso, é um lugar de banhos de mar, bastante remoto, de modo que para ir à praia é preciso alugar um auto ou caminhão, que passa por uma estrada de ferro. De Osório até Tramandaí a estrada não é boa, nunca foi boa, areia em abundância.

A seguir vêm estas críticas bem contundentes:

O Município de Osório não se interessa pela estrada, e a ponte que atravessa um rio e desemboca no mar, que foi construída pelo governo do Estado, está em completo abandono. A maior parte das tábuas está podre, de modo que é muito perigoso o trânsito. Algumas pessoas interessadas em ganhar alguma coisa colocaram mesas na beirada e quando se passa é preciso pagar 1$500. Um pouco antes de chegar à praia do mar é preciso passar pela areia que é muito densa, e alguém colocou tábuas à guisa de uma escada, para que o automóvel possa passar, senão ele afundaria na areia. E para passar por ela é preciso pagar 10$000. É uma miséria e uma incúria do Governo e do Município que para passar por uma estrada pública é preciso pagar! Na praia a estrada é como foi criada no começo do mundo e se poderia muito facilmente construir uma estrada de ferro até Torres, mas nenhuma autoridade pensa. O interesse principal no Brasil é a política.

Depois de passar também por Capão da Canoa, a viagem seguiu para Torres. A quatro quilômetros da sede da vila, o caminhão teve de parar porque a estrada era estreita demais e os passageiros resolveram seguir a pé, inclusive o Cônego Donato, que passou por estas peripécias:

Como eu seguia atrás e não podia ver o caminho, num certo momento caí como um morto cai. Quando levantei, senti uma dor aguda no joelho direito, mas tive força e coragem para continuar o caminho.

Finalmente, pelas 10h30 da noite chegamos a Torres, cansados, acabados, com a camisa molhada de suor. Fomos bater na porta da casa de Guerino Sartori, que tem um hotel a poucos passos da igreja paroquial de Torres. Vieram abrir dois jovens empregados do hotel. Nos prepararam às pressas um pouco de café e às 11h30 fui repousar num pequeno quarto. Mas assim que apaguei a luz apareceu uma nuvem de mosquitos que quase não me deixaram dormir. Para mim era o mesmo que um doente de asma sofre, gostaria de dormir, mas lhe falta o ar e não consegue, e isto é um cruel tormento.

E Tubarão ainda estava longe...

José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.

mail pozenato@terra.com.br

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