Caxias do Sul 24/11/2024

Descobrindo Francesco Petrarca

Musicalidade poética do autor italiano desembarcou de surpresa na trajetória de escritor serrano
Produzido por José Clemente Pozenato, 23/05/2024 às 10:32:57
José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”
Foto: Marcos Fernando Kirst

Nem todas as descobertas são planejadas. Até mesmo o descobrimento do Brasil aconteceu fora dos planos. Basta ler a carta de Pero Vaz de Caminha, que ficou espantado e fascinado com o que viu. Escreveu ao rei de Portugal, usando até ponto de exclamação:

Senhor. Neste dia [21 de abril] a horas de véspera, houvemos vista de terra! Primeiramente dum grande monte, mui alto e redondo, e doutras serras mais baixas ao sul dele, de terra chã, com grandes arvoredos: ao monte alto o capitão pôs nome o Monte Pascoal e à terra, Terra da Vera Cruz.

Minha descoberta da poesia de Petrarca também não estava nos meus planos de navegação. Sucedeu que fui incumbido de assumir a disciplina de Literatura Italiana na UCS, em toda sua dimensão histórica, do Duecento (século XIII) até a literatura contemporânea. Quando chegamos a Petrarca, uma aluna mais atilada perguntou se estava correto afirmar que Camões fora influenciado pelo poeta italiano. Fiquei de examinar a questão na aula seguinte, com a comparação de textos dos dois poetas.

Com esse objetivo, mostrei aos alunos um soneto camoniano famoso, até por ser uma paráfrase de Petrarca, que começa com estes versos:

Alma minha gentil que te partiste

tão cedo desta vida descontente.

E os comparei com os versos petrarquianos:

Questa anima gentil che si diparte,

Anzi tempo chiamata a l’altra vita.

Para ser mais didático, mostrei também a minha tradução desses dois versos:

“Esta alma gentil que agora parte,

antes do tempo para a outra vida”

A turma foi unânime em reconhecer que havia grande diferença de estilo entre os dois poetas. E que minha tradução estava mais próxima do modo petrarquiano. Nessa hora tive uma sensação de espanto, e de fascinação, como aconteceu com Pero Vaz de Caminha. E assim como ele desembarcou na terra de Vera Cruz, que depois mudou o nome para Santa Cruz, para conhecer de perto a sua paisagem, fui apreciando página por página o Cancioneiro.

Traduzi os primeiros sonetos e, numa outra combinação não programada, tive ocasião de mostrá-los ao poeta Armindo Trevisan, um especialista em Dante Alighieri e em poesia do Duecento italiano. Depois de saborear a minha tradução – como ele mesmo disse –, me lançou um desafio: traduzir todo o Cancioneiro, que tem exatamente 366 poemas.

Tradução do "Cancioneiro" feita por José Clemente Pozenato

Cinco anos depois, concluída a tradução, consultei uma editora paulista especializada na publicação de clássicos da literatura: a Ateliê Editorial, que mantinha parceria com a Editora Unicamp, da Universidade de Campinas. E outra surpresa, para não dizer outro descobrimento, entrou na minha história: a editora já tinha as ilustrações para o livro, feitas pelo gaúcho Enio Squeff, um serrano de Nova Prata, feitas para uma tradução que não tinha sido aprovada pelo Conselho Editorial. De imediato, o editor me telefonou para dizer: “Sua tradução está perfeita e chegou no momento certo”. Solicitou também que alguém escrevesse uma apresentação inicial. Fiz o pedido ao Armindo Trevisan, que estava na origem de toda a viagem pelo mar petrarquiano, que aceitou o convite prontamente.

Em resumo, Francesco Petrarca deve ter feito magias, infiltradas em seus versos, para que eu o colocasse em língua portuguesa respeitando “a musicalidade do idioma original”, como afirma Armindo Trevisan no prefácio!

Francesco Petrarca (1304 - 1374)

José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.

mail pozenato@terra.com.br

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