Para quem nasceu em Antônio Prado (eu não tive essa honra), o Rio das Antas não é um mero acidente geográfico. Sempre foi uma fatalidade histórica. Como foi o Bósforo para os Gregos. Como o Cabo das Tormentas para os Portugueses. Acho que me entendem: atravessar o Rio das Antas era como cruzar o limiar entre dois mundos. Uma coisa para ser cantada em epopeia.
Modestamente, faço aqui minha epopeia. Por volta de 1950, eu estava sobre a carroceria de um caminhão, mais um bando de gurizada, estreando meu amor por Antônio Prado. A estrada era barrenta. Na beira do rio, o chofer, um tipo de cara vermelha e braços cabeludos, berrou para todo o mundo descer. Depois que descemos, o caminhão deslizou, derrapando, até se acomodar com um suspiro sobre a velha balsa de madeira. Deslizando e derrapando atrás dele, formamos alas sobre a balsa. O rio roncava, como se houvesse mil antas bufando (isso era o que eu imaginava). O balseiro não ria. Fazia pior: olhava a gente com um brilho de zombaria no olho. Desde então aprendi, de experiência própria, que atravessar aquele rio, naquela balsa, era aventura para predestinados. Como Odisseu, ou Vasco da Gama.
Para os nascidos Depois das Antas, sobrava a alternativa de sair para o mundo pela Vacaria, seguindo a trilha das tropas dos bandeirantes. Uma escolha simples: ou ficar enfurnado no fundo dos vales, ou ser de vez um cosmopolita. E foi esse o dilema vivido por gerações de pradenses. Uns fizeram uma escolha, outros a outra. E tudo ficou registrado na fisionomia de Antônio Prado, para quem quiser ver: agora existe ponte e a estrada se alarga e perde novecentas de suas mil curvas.
Quem chegar lá pode pedir, por exemplo, uma “sopa da imperatriz”, que é um verdadeiro luxo da nobreza. Ou comer uma pizza igual à de cem anos atrás, ouvindo cantar a Dona Lombarda na mesma versão cantada na Idade Média, e que só foi guardada lá, Depois das Antas. Pode se surpreender com vitrais civilizadíssimos na igreja matriz ou encontrar, de repente, uma velha senhora ainda cozinhando sobre as cinzas e brasas de um fogolar centenário. Envolta em fumaça como um anjo no meio do incenso.
E o que dizer das casas de Antônio Prado? São casas para se ficar olhando, em êxtase, rezando para que nunca terminem. Também elas, as casas, são um retrato do dilema histórico dos pradenses. São de madeira, a mesma rude madeira dos primeiros tetos dos primeiros desbravadores. Mas ao mesmo tempo ostentam o rendilhado dos lambrequins, faceirice de moça de cidade. Por nada não anda por lá, por estes dias, um punhado de arquitetos do Brasil e do mundo, reverenciando essas casas. Que outra imagem posso dar delas? Mulher com ramos de flores silvestres na cabeça. Ou coisa igualmente simples e bonita.
Alguns anos atrás, havia quem dissesse, até em para-choque de caminhão: “Visite Antônio Prado antes que desapareça”. Eles não sabiam que Antônio Prado estava se preservando, amadurecendo a sua fisionomia. O meu medo agora é que se tenha que advertir: “Visite Antônio Prado antes que a invadam e desfigurem”. Por excesso de amor, talvez, ou por obsessão possessiva.
Não estou bem certo se isto que escrevo seja uma boa homenagem ao centenário que os pradenses estão comemorando. Mas acho que consegui disfarçar a emoção. A emoção que me assalta cada vez que vou até Depois das Antas.
OBS.: Esta crônica, que para mim é ainda atual, foi escrita em dezembro de 1986, quando se comemorava o centenário da criação da Colônia de Antônio Prado por Dom Pedro II. Pouco tempo depois, em 1990, as casas do centro da cidade foram tombadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico Nacional. E minha emoção se tornou plena quando, em 1995, a cidade serviu de cenário para o filme O Quatrilho, levando as belas imagens de Antônio Prado para o mundo inteiro!
José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.
pozenato@terra.com.br
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