João João tem um filho feio. Não tive coragem de dizer isso a ele e nunca terei. João João é um semiconhecido e semiconhecidos são perigosos. Nunca se sabe o grau de semiconhecimento que temos deles. E eles de nós.
Encontrei-o por acaso no centro, lugar ideal para encontrar pessoas por acaso no centro. Paramos na calçada, João João atrapalhando os transeuntes com seu Travel System Baby Confort, como ele chama o carrinho de bebê. Evitamos falar de futebol, de política, de religião e de mulheres. Sobrou o clima. Era um dia cor de prédio.
Aleguei pressa para ir, digamos, ao dentista. Mas João João é dentista. Perguntou. Falei em gengiva e ele recomendou uma pasta. Fiz de conta que anotei. Ele percebeu, ficou triste. João João gosta mais de mim do que eu dele. Me consideraria um amigo? Cogitei, por culpa, tornar-me amigo dele também.
João João é infeliz no casamento. Percebi quando ele disse que era muito feliz no casamento.
“Sou muito feliz no casamento”, ele disse, como se eu pudesse fazer algo.
Anos atrás, apresentei-lhe uma prima. Foi o que pude fazer, anos atrás. Agora, em pleno centro, muita água havia rolado para os bueiros.
Brinquei com o bebê, que estava dormindo, acordou, soltou uma gargalhada horrível. Deve ser o dentinho, falei, ele quer mostrar que tem. João João passou a embalar o Travel System Baby Confort. E partiu para o ataque.
Falou do Caxias, da eleição, do Papa, da minha ex. As pessoas pararam de desviar de nós na calçada e formaram um círculo em torno da roda. O bebê gargalhava e uma senhora deu pitaco. Tinha que pegar no colo. Era falta da mãe, tadinho, é a cara do pai. Outra disse que era a fralda, frouxa demais. Um, de bigode, comentou que as crianças de hoje em dia, na época dele, acabou os valores.
Foi então que comecei a sentir dor na gengiva, precisamente a da parte superior, como quem está indo para o molar, à esquerda, duas curvas depois do canino. Um transeunte receitou alho cru, o melhor anti-inflamatório. Outra disse para usar uma escova infantil, cerdas supermacias. Alguém ouviu supremacia, foquei no infantil e apaziguei pedindo o cartão do João João. Ele aceitava todos os planos. Eu não tinha nenhum.
O bebê gargalhava em si. Passou uma ambulância em ré. O povo tirava par ou ímpar para o neném no colo. Aleguei pressa para o ônibus. João João ofereceu carona. Afinal moramos perto. Toda noite o filho dele acorda às duas, quando aproveito para engolir o dente e escovar os alhos com a pasta tutti frutti.
Paulo Damin é escritor e tradutor em Caxias do Sul.
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