Por Eulália Isabel Coelho
É sempre instigante quando o cinema se vê de modo catártico, através da metalinguagem, que nos oferece a possibilidade de adentrar em seus circuitos mais secretos. É o cinema dentro do cinema, falando de si mesmo. Mostrando como é pensado, produzido, incensado em sua própria arte.
O longa de David Fincher, com roteiro póstumo de seu pai Jack Fincher (falecido em 2003), faz esse trajeto envolvendo o espectador no cerne da sétima arte. É Fincher, nominado três vezes ao Oscar, em sua mais plena forma, com um tom bem distante de suas obras anteriores como Clube da Luta (1999) ou Garota Exemplar (2014).
A obra, produzida pela Netflix, traz à cena os bastidores da criação do aclamado Cidadão Kane (1941), dirigido pelo estreante Orson Welles e escrito por Herman J. Mankiewicz. O recorte é sobre as condições sob as quais o roteiro foi ditado (literalmente) a uma assistente, sob caráter de urgência enquanto Mank, interpretado por Gary Oldman, se encontrava acamado.
O ator que concorre nessa edição do Oscar, recebeu sua primeira estatueta em 2018, por O Destino de uma Nação, de Joe Wright. No papel de Mank, Oldman torna o personagem multidimensional. É arrebatador, extravagante, decadente. E não paramos de admirá-lo.
Gary Oldman, admirável em atuação afiada
O artifício de tratar a obra como um roteiro em si não só encanta o espectador como é imersão na pluralidade do enredo. Os acontecimentos tanto estão no pequeno cômodo do hotel fazenda em que o roteirista se encontra recluso, quanto fora, nos flashbacks que contribuem para a compreensão da inspiração de seu trabalho.
Mank é uma preciosidade para cinéfilos, principalmente os que conhecem mais profundamente Cidadão Kane e as idiossincrasias de seu diretor, Orson Welles que é também o protagonista. Por isso, sugiro assisti-lo, antes de Mank, para que sua experiência cinematográfica seja mais rica e envolvente.
Citizen Kane foi a primeira incursão de Welles no cinema, aos 25 anos. Considerado um “garoto prodígio” vindo do rádio teatro e dos palcos, ficou famoso pela narração radiofônica de “A Guerra dos Mundos”, de H. G. Wells, em 1938, que causou pânico na população. A ousadia de Welles chamou a atenção de Hollywood que o contratou com total liberdade criativa para dirigir seus filmes. Um ponto em comum à autonomia dada a David Fincher.
Cidadão Kane relata a história de um famoso jornalista da ascensão à decadência, contada de forma prismática. São vários olhares sobre a vida do protagonista. A inspiração de Mank foi o magnata da imprensa norte-americana William Randolph Hearst, com quem participou de inúmeros jantares e festas durante a Era de Ouro de Hollywood (1930-1940).
Amanda Seyfried, na disputa entre as coadjuvantes
Mank e Welles eram parte de uma mesma equação. A famosa crítica de cinema Pauline Kael (1919-2001) sentenciou: “Há monstros, e também monstros sagrados; Welles e Mankiewicz merecem lugares na categoria de monstros sagrados.” Por sua vez, o cineasta francês François Truffaut (1932-1984), afirmou que Cidadão Kane “é provavelmente aquele [filme] que iniciou o maior número de cineastas em suas carreiras”.
David Fincher, terceira indicação como diretor
O filme de Fincher, como dito anteriormente, faz o recorte de um momento na vida de Mank, sem nos contar sua história pregressa. Creio que é mais fácil compreendê-lo com algumas breves informações sobre sua carreira, do jornalismo cultural ao cinema.
Herman J. Mankiewicz (1897-1953) nasceu em Nova York, formou-se em Columbia em 1916, trabalhou como repórter no New York Times, contribuiu para a Vanity Fair e The Saturday Evening Post, entre outros, sendo crítico teatral do The New Yorker. Em 1926 foi contratado como roteirista em Hollywood, acumulando no currículo mais de 70 filmes. O primeiro que escreveu foi o sucesso The Road to Mandalay, dirigido por Tod Browning.
Mank era, como retratado no filme de Fincher, um jogador compulsivo, endividado e alcoólatra. Mas, sobretudo, um genial roteirista que muitas vezes até desdenhava do meio cinematográfico.
Mank e sua assistente, papel de Lily Collins
Por questões contratuais, o nome de Mank não apareceria nos créditos de Cidadão Kane e isso parecia não ser um problema, até ele se dar conta de que aquele roteiro era o melhor que já havia escrito (ditado, no caso). Entra aí toda uma rusga histórica entre ele e Welles. Este, apesar de ter feito apenas observações, também assinou o texto, dividindo assim o Oscar de Melhor Roteiro com Mank.
Mank é o que se poderia chamar de filme raiz. Aquele que vai à essência do cinema, que resgata nessa arte uma proposição tão inovadora quanto a de Cidadão Kane. Os ecos deste filme estão por todo o longa de Fincher como tributo ao criador da narrativa que marcaria a história do cinema.
Confira a seguir as indicações de Mank e dos demais filmes concorrentes ao Oscar em sua 93ª edição que acontece em 25 de abril.
FILMES E INDICAÇÕES
MANK
Dez indicações:
Melhor Filme
Melhor Ator: Gary Oldman
Melhor Direção: David Fincher
Melhor Atriz Coadjuvante: Amanda Seyfried
Melhor Fotografia
Melhor Figurino
Melhor Trilha Sonora
Melhor Mixagem de Som
Melhor Maquiagem e Cabelo
Melhor Design de Produção
Disponível na Netflix.
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NOMADLAND
Frances McDormand já ganhou duas estatuetas
Seis indicações:
Melhor Filme
Melhor Atriz: Frances McDormand
Melhor Direção: Chloé Zhao
Melhor Roteiro Adaptado
Melhor Fotografia
Melhor Edição
Disponível na Hulu.
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MINARI
Yuh-Jung Youn, 73 anos, adorável velhinha
Seis indicações:
Melhor Filme
Melhor Direção: Lee Isaac Chung
Melhor Ator: Steve Yeun
Melhor Atriz Coadjuvante:Yuh-Jung Youn
Melhor Trilha Sonora
Melhor Roteiro Original
Ainda não disponível no streaming.
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OS 7 DE CHICAGO
Sacha Baron Cohen (Borat), como coadjuvante
Seis indicações:
Melhor Filme
Melhor Ator Coadjuvante: Sacha Baron Cohen
Melhor Roteiro Original
Melhor Fotografia
Melhor Canção Original: “Hear My Voice”
Melhor Edição
Disponível na Netflix.
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JUDAS E O MESSIAS NEGRO
Daniel Kaluuya promete com desempenho intenso
Seis Indicações:
Melhor Filme
Melhor Ator Coadjuvante:
Daniel Kaluuya e Lakeith Stanfield
Melhor Roteiro Original
Melhor Fotografia
Melhor Canção Original: “Fight for you”
Ainda não disponível no streaming.
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O SOM DO SILÊNCIO
Riz Ahmed vive drama musical comovente
Seis indicações:
Melhor Filme
Melhor Roteiro Original
Melhor Ator: Riz Ahmed
Melhor Ator Coajuvante: Paul Raci
Melhor Edição
Melhor Mixagem de Som
Disponível na Amazon Prime Video.
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MEU PAI
Anthony Hopkins, 83 anos, sensível atuação
Seis indicações:
Melhor Filme
Melhor Ator: Anthony Hopkins
Melhor Atriz Coadjuvante: Olivia Colman
Melhor Roteiro Adaptado
Melhor Edição
Melhor Design de Produção
Ainda não disponível no streaming.
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BELA VINGANÇA
Carey Mulligan, na melhor fase de sua carreira
Cinco indicações:
Melhor Filme
Melhor Direção: Emerald Fennell
Melhor Atriz: Carey Mulligan
Melhor Roteiro Original
Melhor Edição
Disponível por US$19,99 na Amazon Prime Video, iTunes e Google Play.
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Eulália Isabel Coelho é jornalista, professora de cinema e escritora
bibacoelho10@gmail.com
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