Caxias do Sul 23/11/2024

Com todos os sentidos aguçados

O novo “normal” imposto pela Covid-19 induz a uma ressignificação dos olhares e dos sentires
Produzido por Marilia Frosi Galvão, 02/06/2020 às 08:40:51
Foto: ARQUIVO PESSOAL

Há muitos meios de iniciar uma crônica. Um deles é trivial. Deixe os sentidos aflorarem. Não os reprima. Eles trazem o mundo físico ao reino da mente. Um bom começo é ir à janela e observar. Deixe os olhos vagarem sem pressa. A seu bel prazer, em algum momento eles se deterão em algo que capture a atenção.

Esse tem sido um dos meus passatempos na quarentena imposta pela Covid-19. Visualizo a rua e as pessoas, todas com máscaras de proteção, quem imaginaria algo assim a não ser na ficção? Esse é o novo normal. Cada transeunte, em sua complexidade, abriga histórias. Imaginá-las, por sinais apreendidos por um atento olhar às vestimentas, à postura, ao jeito de caminhar, é um desafio prazeroso.

Daqui da sacada do prédio onde moro, meu campo de visão é amplo. A fila enorme de pessoas à procura de emprego na calçada do Sine – FGTS, com distanciamento assinalado em amarelo no chão para evitar proximidade física. A imobiliária. O estacionamento. A loja da TIM. A fruteira. O studio de tatoos. A farmácia Panvel. A cafeteria. A financeira. O Banrisul na Alfredo. O bazar da esquina, que vende de tudo. O ponto de táxi. A ervanária. O sebo. A Caixa Federal. A academia de ginástica sobre a Galeria, onde eu fazia exercícios três vezes por semana, antes da pandemia.

Experimento um quê de nostalgia. A rua tem alma. É o que contemplo, até onde minha visão alcança. Quantas vidas transitam neste cenário visto da varanda de onde habito... O vendedor de flores, que agora também oferece máscaras de proteção, o catador de lixo, a varredora da rua, o vendedor de artesanato, que vezenquando expõe sua mercadoria na calçada, a Viviane, moradora de rua, que passa em seu caminhar, de ida e volta, todos os dias. Penso que ela vá até o Monumento ao Imigrante e volte, concentrada em seus pensamentos... pelos canteiros da Júlio.

Que foi isso? Uma rajada de vento? Oh, uma revoada de pombos!! Surgiu tão repentina, que mudou o foco da contemplação.

Sentimentos, sensações, também os vivenciamos na literatura. Desde Machado de Assis até os dias atuais, cento e cinquenta anos depois, a crônica brasileira tem grandes nomes de referência nesse gênero literário. Se fosse elencar os que mais admiro, precisaria de muito espaço. Mas há um, em especial: Rubem Braga (1913-1990) – carinhosamente chamado de “sabiá da crônica”, pelo seu lirismo e poesia, um artista da palavra que transforma uma cena banal em um texto inteligente e de bom gosto.

Olhe só o primeiro parágrafo de uma crônica dele intitulada: “Meu ideal seria escrever...”: “ Meu ideal seria escrever uma história tão engraçada que aquela moça que está doente naquela casa cinzenta quando lesse minha história no jornal risse, risse tanto que chegasse a chorar e dissesse... “ai, meu Deus, que história mais engraçada”! E então a contasse para... a amiga cozinheira que contaria para...”.

Em continuidade, a história (a qual ele não conta) vai aos poucos alegrando as pessoas, aqui e ali, vai passando adiante, provocando risos e sorrisos e as pessoas vão se tornando felizes umas com as outras, até no último parágrafo:

“...E eu esconderia completamente a humilde verdade: que eu inventei toda a minha história em um só segundo, quando pensei na tristeza daquela moça que está doente, que sempre está doente e sempre está de luto e sozinha naquela pequena casa cinzenta de meu bairro”.

Ah, se eu pudesse... também contaria uma história que alegrasse as pessoas nesse tempo de incertezas, confinadas em suas casas, preocupadas com a saúde e ansiosas em relação ao futuro. “Meu ideal seria dizer” a todos aqueles que tiveram suas vidas interrompidas, suspensos os empregos, as aulas nas escolas, e tudo o mais, que: este outono de 2020 representa uma pausa, um profundo respiro, inclusive para a natureza se recompor, e que a onda vai passar e ficaremos bem.

Se... estamos caminhando em uma noite sem luar, vejamos o céu tão limpo. E aproveitemos os silêncios para nos conectarmos com nossa essência, deixemos nossos sentidos aflorarem. Aguçá-los melhora a vida. É bom se sentir vivo, respirar fundo, (sem respirador artificial). Nesta fase de isolamento em nossos lares, somos obrigados a olhar para dentro de nós, num exercício de autoconhecimento, a refletir sobre o que temos de melhor e de pior. É uma busca pessoal.

Todos temos talentos. Esta afirmação, também inspirada na crônica de Rubem Braga, traduz o meu ideal, a história, aquela que eu gostaria também de inventar e que alegrasse as pessoas, e desse esperanças, e elas sorrissem e dissessem que sim, podemos mudar nossos pensamentos, vamos redescobrir nossos lares, fazendo as tarefas com calma, uma de cada vez, com plena atenção, vamos ler, escrever, bordar, pintar, faxinar, fazer as unhas, cuidar da pele, e das emoções. Cuidar de si para cuidar dos outros.

E para quem gosta de brincar de chef, como eu, a melhor peça da casa - a cozinha - é um “prato” cheio de toques que são degustados, sons que são cheirados, cheiros que são tocados, gostos que são visualizados... hummm, aprendi a fazer um pão delicioso, a sovar a massa, assar, sentir o cheirinho perfumando a casa. Legumes assados. Alho fritando na manteiga. Cheiros, sons, sabores.

E ficaremos felizes, confiantes, pois assim que for possível, iremos nos olhar nos olhos e nos abraçaremos forte!!!! Sim, abraços mil, beijos mil e apertos de mão. Sim, porque somos pele, e nos completamos no outro.

Enquanto aguardamos por esse dia, o outono nos acaricia com sua luz e cores fascinantes, um espetáculo para os nossos sentidos. É tempo de cáquis, pinhões, bergamotas.

Marilia Frosi Galvão, professora, escritora e cronista

E-mail: galvao.marilia@hotmail.com

Da mesma autora, leia também: QUATRO ESTAÇÕES EM MIM