Produzido por Eulália Isabel Coelho
Talvez minha escolha pelo jornalismo venha da curiosidade, da ideia de descobrir, saber mais sobre os fatos e contar para todo mundo. Mas bem antes disso, a literatura injetava mais cores ao meu universo. As imagens oriundas da leitura formavam uma película de fantasia. E os frames do inconsciente? Esses eram como os de um rolo de filme em projeções surreais. E foram elas, as coisas imaginárias, que me aproximaram do cinema.
“Bambi” talvez tenha sido a primeira animação que vi. Mas como eu também tinha o livro ilustrado, não tenho certeza. A vontade de cinema arrebatou-me quando chegou a TV lá em casa em função da Copa de 1970. Nos dias de jogo, vizinhos preenchiam a sala que cheirava a quentão e pipoca. A novidade merecia destaque na decoração com seu tubo protuberante e toda a gente se maravilhava.
Assombro define meu olho brilhando diante da telinha ao ver Chaplin pela primeira vez. Criou-se, então, um expressivo laço: o écran e eu nos tornamos inseparáveis. A vida em takes era uma festa. Em tardes de verão esfuziante, a pelvis do Elvis ritmava a vida, sem eu saber que ele já não era tão galã assim.
E Gene Kelly, que inicialmente achei ser uma atriz por causa do nome, com aqueles passos divinais em “Cantando na chuva”? Um ou dois filmes depois, liguei o nome à pessoa. Foi quando comecei a prestar atenção nos créditos de abertura. Quem eram os atores, o diretor, etc.
Vi Liz Taylor encarnando Cleópatra, com seus olhos que eu ignorava serem violeta. O preto e branco da telinha me apresentou ao suspense na noite em que assisti escondida ao clássico hitchcockiano “Psicose” (1960). Norman Bates tornou-se sinônimo de loucura e descobri que sentir medo era minha praia. Surgiu ali a paixão pelo gênero que logo deu as mãos ao terror. Esse encontro foi decisivo para que, na vida adulta, eu passasse a estudar Alfred Hitchcock com anseio por reviravoltas, pelo inesperado. Indiscrições da curiosidade para deslindar os meandros dos enredos.
Anthony Perkins e Janet Leigh em 'Psicose'
Naquelas tardes, torci o nariz para Jonh Wayne que matava índios sem nenhum pudor. Diligências, tiros, gritos, matança, causavam-me mal-estar porque dizimar indígenas não me parecia certo. Eu, em arroubos românticos, perguntava de quem eram as terras, afinal? O homem branco podia ser desprezível. A constatação doeu-me. Era preciso assimilar também esse tipo de realidade. Para compensar, sempre se podia dar de cara com figuras hilárias, como Buster Keaton, Harold Lloyd, “Os Três Patetas” ou “O gordo e o magro”.
O humor físico de Harold Lloyd
O cinema, em sua monumental sala, foi a descoberta mais emocionante naqueles anos de chumbo. Alguém (creio que meu avô) levou-me para assistir “Se meu fusca falasse” (1968). Do filme mesmo só ficou a imagem do carro, porque o Cine Glória, na minha cidade, Santa Maria, era tão magnífico que me desviou a atenção. Na penumbra da sala, meus olhos buscaram os painéis da índia Imembuí. Queria captar todos os detalhes. Foi como a primeira ida a igreja, olhos agigantados para ver o tanto de anjos, demônios e formas pictóricas sagradas ali pintados.
Àquela época, “Romeu e Julieta” (1968), de Franco Zefirelli, chegou às telonas com alguns anos de atraso e classificação para maiores de 18 anos. Inconformada, imaginei me “fantasiar de adulto” para passar na bilheteria. Na impossibilidade, li e reli Shakespeare e criei as cenas mentalmente.
Foi fácil porque, nas revistas da época (O Cruzeiro, Manchete, Realidade), havia fotos dos atores. Percebi que, através dessas publicações, conheceria mais sobre cinema. Meu avô, um leitor ávido, comprava revistas e jornais. Ele lia tudinho, até os anúncios. Eu me deleitava com as fotos de Marlon Brando, Marilyn, James Dean, como o fazia toda a gente (até hoje, não é?). E, a cada edição, descobria mais e mais. Foi em um desses periódicos que vi pela primeira vez o rosto já amarfanhado de Clint Eastwood. Como eram bonitos aqueles traços!
Com a adolescência, mais idas ao cinema, amigos cinéfilos, bate-papos sobre as obras, atores, diretores. Trocas infinitas e a vontade de sempre mais. Isso nos levava de uma coisa a outra em descobertas fascinantes. Nessa época, assisti “Um estranho no ninho” (1975, Milos Forman), com Jack Nicholson. Ali aprendi, antes mesmo de aprender, que existem finais em aberto e que eles podem nos deslocar internamente.
Quando “O último tango em Paris”, de Bernardo Bertolucci, entrou na programação, fui de ônibus, com um pé fraturado, assistir. A obra, de 1972, tinha sido proibida no Brasil à época do lançamento, chegando bem mais tarde aos nossos cinemas. A atuação visceral de Marlon Brando é recordação indelével. Confesso que ele fez um estrago no meu espírito.
Em sessão memorável, por volta de 1978/79, “Laranja Mecânica” (1971, Stanley Kubrick) perturbou-me igualmente. Como era possível um imaginário tão denso e insano ao mesmo tempo? E o que eram aquelas tarjas e bolinhas pretas que tentavam cobrir o corpo nu dos atores? A censura conseguia ser risível e propiciava-nos o deboche, o que era um alívio. “O Exorcista” (1973, William Friedkin), “Carrie, a estranha (1976, Brian De Palma) e “Alien” (1979, Ridley Scott), deixaram-me insone, várias noites. Obras inesquecíveis para quem vibra com terror e suspense.
Para saciar o apetite de sétima arte, as sessões do Cineclube Lanterninha Aurélio e do Instituto Goethe, eram perfeitas. Foi quando me apaixonei pelo Expressionismo Alemão. A sala do Centro Cultural era pequena para tantos estudantes. Sentados no chão, recostados nas paredes, valia tudo para conhecer “O gabinete do doutor Caligari” (1920, Robert Wiene), “Metrópolis” (1927, Fritz Lang), “Nosferatu” (1922, F. W. Murnau)...
Max Schreck encarna Nosferatu
Além do cineclube, havia ciclos com obras de diretores famosos: Carlos Saura, Costa-Gavras, Werner Herzog e tantos outros. Lembro de ir de um cinema a outro para não perder nada. Santa Maria era pura efervescência nos anos 1970/80 com a Universidade Federal e seus alunos vindos de todos os cantos do país e também do exterior. As trocas culturais possibilitavam constante pulsação de conhecimento.
Assim foi que o cinema se tornou meu envoltório de sonhos. Vez ou outra, pergunto-me intrigada se a vida, afinal, não é um incrível plano-sequência. Não é curioso fantasiar que habitamos fotogramas e nem nos damos conta disso?
Curiosidades
Meu avô foi lanterninha de cinema na década de 1940. Ele deixava minha avó entrar escondida, depois que as luzes se apagavam.
Lenda de Imembuí: a índia, cujo nome significa “filha das águas”, vivia com sua tribo onde hoje é a cidade de Santa Maria. Ela se apaixonou por Rodrigo, um bandeirante. Do casamento deles, nasceram muitos filhos tidos como os fundadores da cidade.
Aurélio, nome do cineclube, era lanterninha famoso em Santa Maria.
Plano-sequência: longas tomadas (takes) ou planos em que a ação acontece ou parece acontecer de modo ininterrupto, sem cortes. Para entender melhor, temos a analogia proposta por Ivor Montagu de que a tomada é a palavra e a sequência a frase, a disposição das palavras em ordem correta.
Eulália Isabel Coelho (Biba) é jornalista, professora e escritora
e-mail:bibacoelho10@gmail.com