Às vésperas da comemoração do sesquicentenário da imigração italiana na Serra Gaúcha, a canção Mèrica, Mèrica, guardada como um hino dos imigrantes, não sai de meus ouvidos. Isso também porque ela é cantada por ninguém menos que Caetano Veloso, como trilha sonora do filme O Quatrilho.
Quem se encarregou dessa façanha, na produção do filme, foi nosso maestro Renato Fillipini. Em entrevista a Patrícia Parenza, para o jornal Pioneiro, em outubro de 1995, quando o filme já havia sido lançado, relatou o seguinte:
“Eu estava morrendo de medo de encontrar Caetano, por ele ser uma das pessoas que mais me tocou musicalmente, mas ele é muito gentil e calmo, é um poeta. Eu contei para Caetano a nossa história e a importância dessa música para nós, ele se emocionou muito e decidiu, na hora, que incluiria Mèrica no show que fez na Itália na semana seguinte”.
E concluiu a entrevista dizendo que o momento mais difícil foi o de ele gravar a música para Caetano: “quase morri de vergonha!”. Mas, para sua felicidade, Caetano Veloso acabou cantando para o filme do jeito que Renato havia gravado, como amostra do estilo seguido na nossa região colonial italiana.
Nessa época, ouvi de um espectador do filme este comentário: “Deviam botar um cantor daqui, e não um baiano”. Respondi na hora: “Mas assim o canto ganha uma dimensão nacional”. E foi o que aconteceu. Uma das pautas da imprensa de todo o país foi divulgar o número progressivo de espectadores do filme. E no XVII Festival de Cinema de Cuba, em dezembro daquele ano, O Quatrilho ganhou o prêmio de melhor música.
Outra contribuição inesquecível para Renato Fillipini foi a de ensinar a Glória Pires, no papel de Pierina, a rezar a Ave-Maria em latim. Para surpresa dele, a atriz decorou a letra em menos de meia hora e não precisou repetir a filmagem: rezou a Ave-Maria em latim sem nenhum erro.
Outra marcante cena de bastidores foi a da filmagem de Pierina xingando o Padre Gentile na igreja, na frente de toda a comunidade. A sequência foi registrada na capela de São Gotardo, no caminho para Vila Seca, com minha presença atrás das câmeras. Também desta vez, Glória Pires não precisou repetir a filmagem. Ao contrário: quando ela concluiu a representação a equipe técnica inteira bateu palmas. Não por acaso é a cena mais lembrada pelos espectadores do filme. Eu me aproximei então do Fábio Barreto, diretor do filme, e comentei:
- Impressionante! Parece que baixa uma força do céu e toma conta da Glória Pires.
- Está enganado – riu ele. – Não baixa nada. Sobe é uma força do chão, de dentro da terra, que toma conta dela.
Outro detalhe de bastidores é que esta cena, no romance, se passa na sacristia, com apenas três personagens: Pierina, o Padre Gentile e o sacristão. E foi esse o enquadramento adotado no roteiro do filme. Acontece que, durante o período de preparação da filmagem, a equipe de produção, incluindo o diretor Fábio Barreto, foi assistir à peça teatral O QUATRILIO, representada pelo grupo Mìseri Colóni, onde a cena dramática é feita diante do altar. Luiz Carlos Barreto decidiu na hora: a briga da Pierina com o padre teria esse formato no filme.
Para concluir, outra pequena curiosidade de arquivo. O jornal Tempo Todo, que circulava em Caxias do Sul na época, registra no dia 3 de novembro de 1995 esta notícia vinda de um leitor:
“QUATRILHO
Caxiense radicado no Rio de Janeiro ligou no feriado para contar, emocionado, sobre a reação da plateia ao filme O Quatrilho, que ele foi ver na quarta-feira. Quando terminou a projeção o público levantou e aplaudiu. Não era sessão de estreia nem coisa parecida.”
Repetia-se no Rio a cena da sessão de estreia, chamada de “avant-première”, no Cine Imperial, em Caxias. Terminada a projeção, o público se pôs de pé e ficou aplaudindo até serem concluídos os créditos na tela. Fábio Barreto, a meu lado, mostrou o relógio e disse:
- Foram quase sete minutos de aplausos. Fizemos o filme certo!
Como sempre, os bastidores escondem curiosidades que não chegam ao palco!
José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.
pozenato@terra.com.br
Do mesmo autor, leia outro texto AQUI