POR JOSÉ CLEMENTE POZENATO
Começo com uma historieta engraçada, mas baseada em fatos reais, como é de bom tom avisar o leitor.
Nos anos 70, meu colega de profissão e de poesia, Ary Nicodemos Trentin, de saudosa memória, ministrava a disciplina de Teoria da Literatura, no curso de Letras da UCS. Num intervalo das aulas, quando os professores se encontravam para descontrair com um cafezinho e um cigarro, o Ary chegou na sala com ar entre furibundo e divertido. Não foi preciso cobrança para ele contar o motivo.
O motivo era que ele tinha passado a aula inteira explicando para as alunas e os alunos o conceito de “catarse”, introduzido por Aristóteles na Poética, quando analisa a função da tragédia. Começou dando a etimologia da palavra grega: katá+ársis, em que ársis significa eliminação, purgação, e katá é um advérbio que significa “para baixo”: desse advérbio provêm palavras como cataclismo, catástrofe etc. Depois, passou a analisar o conceito e a dar exemplos, citando antigos mitos. Terminada a explanação, resolveu testar o quanto a turma havia captado da doutrina aristotélica. E perguntou:
- Então. Alguém pode agora dizer o que é catarse?
Silêncio. O silêncio do receio e da ignorância.
- Será que ninguém entendeu o que significa catarse?!
Uma aluna se animou e ergueu o braço:
- Professor. “Catarse” é “se encontrar”, “se reunir”. Não é isso?
Silêncio ainda mais profundo. O silêncio da expectativa de julgamento.
O professor Ary respirou por duas ou três vezes e resolveu ser tolerante:
- Tudo bem, vamos para o intervalo. Estou mesmo precisando de catarse! Depois a gente volta ao assunto.
Filósofo Aristóteles introduziu o termo "catarse"
O que o deixara furioso era ter gasto uma aula inteira sem resultado nenhum no campo da teoria literária. Mas se divertia porque a explicação da aluna era a fiel tradução de uma palavra da língua Talián (na época discriminada, mas hoje reconhecida como Patrimônio Nacional). Com certeza a aluna aprendera a palavra em casa, porque no italiano, como língua oficial, a palavra usada com o sentido da “catarse”, do Talián, é “trovarse”.
Pois bem. Não é nesse sentido de se reunir, se encontrar, que a catarse é uma boa saída para o confinamento. Pelo contrário: quanto menos a gente se aglomerar, melhor para todos. Para isso é que foi decretado o distanciamento social.
Na teoria de Aristóteles, catarse é o extravasamento das emoções provocado pela poesia, especialmente na tragédia. Por isso ele se posicionava a favor dessa arte grega, contrariando Platão, que era contra tudo o que não fosse pura manifestação do mundo das ideias. Sem lugar para emoções, nem fantasias, que são a matéria poética por excelência.
No Brasil, um sinônimo para catarse seria “descarrego” (com acento fechado no ê: vejam a falta que faz o acento diferencial, eliminado por políticos travestidos de sábios da língua!). Pois o descarrêgo (acabo de incluir a palavra com acento no dicionário do meu computador, só para fazer mais uma catarse!) também significa a eliminação de coisas que pesam na gente, no plano físico, no emocional e no mental. No caso, pelo uso de recursos mágicos, que não deixam de ser parentes próximos da poesia. É uma contribuição trazida pelas religiões de origem africana, como o candomblé e a umbanda.
Bem, fazer um banho de descarrêgo durante a quarentena não parece adequado, já que a ordem é “fique em casa”.
Sobra então a catarse aristotélica. A melhor maneira de ter acesso a ela é pela leitura: leitura de poesia, de romances, de contos, de novelas. Se alguém não é muito dado à leitura, pode optar pelos filmes, ou somar as duas formas narrativas. O mundo da ficção descortina ambientes variados – e põe variado nisso! – que ajudam a diminuir a sensação de confinamento.
E se alguém achar que a tragédia é a melhor forma de catarse, pode rever o vídeo da vitória da Alemanha sobre o Brasil, por sete a um, com o Brasil jogando em casa... Uma tragédia completa, inclusive com um gol depois de haver sofrido sete.
Toda tragédia sempre termina com um sopro de esperança de que tudo poderá ser melhor em outra oportunidade. É assim que vai terminar também com esse “maldito homicida”, como Armindo Trevisan qualificou o vírus que está no ar.
José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado "O Quatrilho", que foi adaptado ao cinema, concorrendo ao Oscar.
e-mail: pozenato@terra.com.br
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