Francisco Paglioli, aqui apresentado na crônica anterior, depois de escritas dezesseis páginas em seu caderno de memórias, conclui:
“Teria muitas coisas mais para contar, mas como são de pouca importância faço ponto final”.
E acrescenta a data, 10-5-42, seguida das iniciais F.P. Mas, ainda na mesma página dezesseis, emenda:
“Passemos a contar algum caso para proveito do papel”. Isto é, seria um desperdício deixar folhas em branco, sem nenhuma outra utilidade. Basta esse traço para adivinhar a disciplina mental de nosso personagem: não deixar nada em branco significava, para ele, preencher todas as oportunidades que a vida lhe oferecesse...
O primeiro caso evocado é o de uma cena dramática, aqui reproduzida respeitando o estilo, para manter o sabor original, só atualizando a grafia:
Uma vez fui convidado para dirigir uma banda de um lugar em que havia uma festa.
Eu disse ao festeiro que não podia aceitar, por quanto era muito longe e eu não queria ir a cavalo até lá. Não, disse ele, o senhor irá junto com o padre, que vai no auto. Aceitei e seguimos viagem até o destino.
Um dia, estando na porta do hotel em que hospedei-me, vi na praça uma multidão de povo fazendo círculo, e uma gritaria infernal.
Aguilhoado pela curiosidade aproximei-me do círculo e... oh horror, duas crianças no centro brigavam, e o povo aplaudia. Não pude me conter, entrei no círculo, agarrei os dois meninos pelos braços e lhes perguntei: - Meninos, sabeis ler? – Responderam-me negativamente. – Pois vão à escola para aprender, e sabereis que não é bonito brigar.
O povaréu debandou como fulminado.
A narrativa desse episódio é arrematada com uma cena humorística:
No dia da festa, estávamos reunidos à mesa, inclusive o padre. Um moço já maduro, querendo fazer espírito, disse: - Eu comi como um padre. – O padre, que não achou graça, replicou: - E eu comi como um burro!
Terminada a festa, regressamos no mesmo auto, e, a uma certa distância, o padre perguntou-me: - Como vai?, está bem a gosto? – Eu respondi ao ministro de Deus: - Estou bem, aqui, como um padre.
A hilaridade foi completa, e fizemos boa viagem.
Em outro episódio, que reconstitui com detalhes como era a vida naqueles tempos, Paglioli conta que montou a cavalo para fazer uma cobrança – naquele tempo morava ainda em Caxias com sua casa de negócio. Tinha chovido, o cavalo escorregou e caiu, e Paglioli ficou com a perna presa embaixo do animal. Quando conseguiu montar novamente, chegou na primeira casa que encontrou e contou que o cavalo tinha caído e que ele estava com a perna doendo:
O dono da casa mandou que apeasse, convidou-me e, dentro de casa, chamou sua senhora. E esta com toda solicitude preparou um emplastro de sal, cachaça e mastruço, mo colocou na perna e me fez deitar numa boa cama.
No dia seguinte Paglioli viu uma máquina de costura de marca Singer que não costurava mais: Olhei a máquina, era nova, concluí que era sujeira unicamente que inibia de funcionar. Pediu querosene, limpou as peças e a máquina voltou a costurar perfeitamente. Pediram então que ele arrumasse um relógio de parede, que tinha parado, e ele pediu uma azeiteira: as rodas bem lavadas abandonaram a sujeira e tic tac tic tac, o relógio principiou a trabalhar.
Paglioli não cobrou nada, em troca do bom atendimento que recebera: E essa boa gente ficou tão contente que, quando ia a Caxias, sempre levava presentes para ele.
Ler coisas antigas sempre é gostoso: são viagens no tempo e em espaços que não existem mais. Viagens que têm muito a ensinar...
José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.
pozenato@terra.com.br
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