Em texto recente publicado neste portal, Luiz Carlos Secco avisa que as montadoras estão pensando em voltar a produzir carros populares, também conhecidos como “carros” pela maioria da população (leia artigo AQUI).
É como se dissessem que vão voltar a escrever poesia.
Para que algo seja popular, é preciso ser mais do que barato. Os jogadores da Seleção são bastante populares, mas.
Para que algo seja popular, é preciso fazer parte das referências compartilhadas por uma população. Uma memória coletiva: um meme. Com o perdão da redundância, um Uno. E uma escada em cima dele.
Carro popular era aquele que tinha uns dez no bairro. Até a vovozinha sabia a marca. Ela tirava a boca da xícara duralex e dizia:
“Olha lá o uninho do Zé”
Que carro popular era que nem xícara duralex. Durava e servia para medir a quantia exata de óleo na rosca de polvilho.
“Olha lá o uninho do Zé”, dizia a vovó. Porque o carro popular se tornava um único ser com o motorista. Os dois ficavam parecidos, que nem cachorro com o dono do cachorro.
Carro popular era que nem vira-lata. Estavam por aí, fazendo parte da paisagem. E cada um tinha sua especificidade: uma mancha na perna, uma roda sem calota, uma orelha quebrada, uma sinaleira torta.
Poesia. Música folclórica, que ninguém sabe quem compôs e todos podem acessar.
O carro popular é de domínio público. A gente olha pra ele e pensa: posso. Daí o desejo de estar dentro de si: ser uno. Muito melhor do que ser apenas argo. Faço propaganda grátis do Uno porque é um exemplo raro de genialidade publicitária.
Também faço propaganda para o Murici Ramalho, que dizia “Goleiro tem de catar”. Não precisa saber dar passes e driblar. Então assim: “Carro tem de andar”.
Eis o milagre da popularidade: a constância, que gera segurança. Mesmo que o Taffarel tomasse uns gols da Bolívia, a gente sabia que ele ia pegar uns pênaltis da Itália na final da Copa. Mesmo que o Uno secasse toda a água do radiador, a gente sabia que a ventoinha ia nos levar até a oficina mais próxima. E que lá o mecânico ia saber o que fazer, nem que fosse com os grampos da avó dele.
O carro popular é o básico. Como o corpo. Já o raro depende de cada um. Não será a roda Nunseikê, a tatuagem no pescoço, a chuteira rosa e o painel Seikelá da SUV que vai dar conta dessa transcendência.
Então eu vibro com a ideia de que os carros populares voltem a ser fabricados. Penso nos poetas, tendo de viajar com seus salários de professores, e sei que para enfrentar as estradas da periferia nada melhor do que um carro popular.
Como disse Macunaíma de Andrade, “muita SUV e pouca saúde: os males do Brasil são”.
Carro popular é saúde e saudade. Se depois o poeta vai saber usar esse Uno para ecoar polissemias, aí é com a alma dele. Mas te garanto que a vovozinha vai gostar da poesia escrita em carro popular. Ela vai dizer, erguendo a cara da xícara:
– Olha lá o Zé em si mesmo!
Paulo Damin é escritor e tradutor em Caxias do Sul.
Do mesmo autor, leia outro texto AQUI