Piiiiiiiiiiiiiiiiii!!!! Tchec, tchec, tchec, tchec!!!! O trem para na gare da Estação Férrea, de Caxias do Sul. Coração aos pulos. O pai e eu entramos. Corro para sentar na janela da frente. Piiiiiiiiiiiiiiii!!!!
E lá vamos nós. O pai conversa com as pessoas. Eu só quero olhar para fora. A paisagem. Vezenquando me assusto com os galhos das árvores que roçam nas vidraças. Uma pena que o trem nos leve somente até Farroupilha. Assim que lá chegarmos, embarcaremos na “linha” – o ônibus que nos conduzirá até a Linha Boêmia, passando por Nova Milano, na RS 122.
Poucos quilômetros depois, o percurso muda para uma estradinha secundária, sem asfalto, com muito barro e pedras, segue até onde se encontra o Capitel de São Jorge... Ali chegamos ao nosso destino, que, para mim, era a entrada do céu, do meu céu de criança e de adolescente – as terras da Família Frosi –, dos tios e os primos. A Colônia.
E justo ali, nesse pedacinho de mundo, embalou-se o berço da colonização italiana nesta região da Serra Gaúcha. Os imigrantes deram início à saga em busca da cocagna no “Barracone” ou “Nuova Milão” – pois eram milaneses em sua maioria. Nessas terras adquiridas, meus avós paternos constituíram a nova família.
Nono Angelo Frosi e Nona Clotilde vieram ao Brasil ainda crianças, com suas famílias. Não os conheci vivos, mas habitam em mim pelos relatos de meu pai Antônio, o “Toni” - e pela herança genética. A prole de doze filhos de meus avós tornou a família numerosíssima pelos outros tantos filhos, dos filhos... Até que chegou a minha vez de pertencer a essa linha de heranças de família, cheiros, comidas, roupas, lugares, valores... Quanta alegria ao ouvir as palavras mágicas de meu pai: “Quer brincar com a tua amiguinha?” Era a prima Nelsa. A minha amiguinha. Até hoje nos tratamos assim.
Os patriarcas Angelo e Clotilde com seus 12 filhos (Foto: Álbum de família)
Recordo da euforia e da sensação de liberdade usufruídas no território ao redor da casa do Tio Piero e da Tia Anetta, os pais da amiguinha. Tão serenos, os tios.
Belos em sua simplicidade e ternura derramadas pelos gestos de amor por todos, pelas expressões de seus rostos e de seus intensos olhos azuis. Eu era a única com olhos castanhos por ali. Outros tios, primos e famílias possuíam suas casas e terras próximas. A família era unida, possuía valores e hábitos embasados na religiosidade e na fé em Deus. Cultivavam a terra e viviam praticamente de tudo o que produziam. O trabalho era sagrado.
Não sei bem o que é ser feliz, ainda hoje, mas vivi a felicidade das coisas simples, feitas com amor. O pão (assado no forno de barro), as massas amarelecidas pelas gemas dos ovos das galinhas que ciscavam livremente. Os queijos, a salame, a copa, o sagu com creme, as compotas de abóboras, figos, pêssegos...
As geleias de frutas colhidas com a luz do sol entrando pelos galhos das árvores. Sopros de vida e energia. Os parreirais e o cheiro das uvas. A produção do vinho. As laranjeiras, as pequenas bergamotas, azedas de fazer caretas. O sol na polpa dos cáquis. A sombra das árvores. O balanço.
Nelsa e eu nos divertíamos muito em contato com a terra, o ar, o sol, a chuva... Me deixei tocar pelos exemplos do pai e dos tios que nos ensinaram a respeitar a natureza. Nela, desde cedo, meus olhos pousaram. Lia as flores, os vaga-lumes, outros bicharocos, a paz que havia nos modos de prazer de minha infância.
Bem pertinho da casa dos tios, havia um campo de futebol. Ali o povo se reunia nos domingos para assistir às “peladas” e a bodega abria as portas. A Bodega era sinônimo de “A Sociedade”, um casarão de madeira utilizado para almoços, casamentos, festas, reuniões dançantes. Os homens jogavam cartas. Era um luxo poder saborear uma gasosa ou um guaraná ali.
Gosto de pensar que vivi parte da infância e da adolescência ali, pois, de alguma forma, carrego em meu espírito essas referências familiares, o respeito, os rituais, a reunião da família em torno da mesa, alimentação típica e linguagem – um misto de dialeto italiano e português, de um tempo em que nem havia televisão, em que os adultos contavam histórias das próprias infâncias, em dias de inverno, toda a família aconchegada ao redor do fogão a lenha, comendo pinhões na chapa, polenta brustolada e costelinhas de porco, tudo feito ali. Lembro com saudades do radicci cotti, dos cafés da tarde com bolos, cucas e bolachas cobertas com glacê e bolinhas multicores. Do chá de folha de laranjeira para os resfriados.
Para lá retornei em inúmeras ocasiões, a me encantar com as variações nas paisagens nas quatro estações. O crepitar de folhas secas sob meus pés embaixo dos parreirais, quando por ali brincávamos. Pés no chão, unhas sujas, joelhos ralados.
É, tudo passou. Eu era pequena. Porém, minha alma ainda reside no perfume das vinhas, das uvas Isabel, matéria-prima para o vinho feito para consumo caseiro. As folhagens de todos os tipos, cultivadas em latas de vários tamanhos, algumas penduradas, outras no chão, ao redor da casa, compondo uma harmonia nas cores e tons.
Das flores vicejando à luz do sol. Da grama. Dos animais – galinhas, pintos, cães... Da cantoria dos pássaros e das cigarras. Do vento cortante no inverno. Das colheitas da uva... no manuseio da natureza pelo qual era respeitada a ordem cósmica, o tempo, a chuva, o sol, o dia, a noite, as estações.
A essência permanece, apesar das mudanças. A estrada está asfaltada. As crianças e os jovens cresceram, foram em busca de seus sonhos: estudar e trabalhar. Muitos descendentes formaram suas famílias em outras cidades. Poucos dos Frosi ainda residem no lugar. Os tios faleceram. O salão comunitário foi nomeado “Pedro Simon Frosi” em homenagem ao tio “Piero”.
O campo de futebol ainda reúne as pessoas aos domingos. A casa dos tios está intocada, desabitada. Fechada há anos, lá permanece, repleta de lembranças. Casa mista de madeira e de material. Percebe-se que a cozinha e banheiro foram construídos depois, como era o costume antigamente. Pintada de verde claro, hoje desbotado, com as janelas brancas.
A janela da memória na Linha Boêmia (Foto: Marilia Frosi Galvão)
Ah, as janelas... Os vidros nos permitem ver as cortinas de crochê, com franjas e tão somente. Sim, faziam crochê para cobrir as janelas. Há tampos de madeira que impedem-nos de vislumbrar o interior da casa. Me pergunto – retiraram os quadros de santos e dos patriarcas da família das paredes? Lembro dos móveis, da enorme mesa na sala de jantar, das cortinas que faziam as vezes de portas nos quartos, do assoalho de tábuas largas, do fogão a lenha, da louça... Ainda há ao redor da casa muitas flores, enormes cristas-de-galo e trepadeiras.
Detalhe da cortina de crochê (Foto: Marilia frosi Galvão)
Eventualmente, a prima Vita – irmã da amiguinha - e eu vamos à Linha Boêmia visitar os parentes. Darsila, outra irmã - uma das filhas que lá permaneceu, tem sua casa construída ao lado da casa dos tios. Sempre acolhedora, Darsila nos prepara aquele legítimo café colonial, com tudo de bom feito em casa e, na despedida, nos “sobrecarrega” de compotas de frutas, geleias e conservas.
Ah! Deixei muitas coisas para trás? Creio que sim. Há poucos registros daquele e naquele tempo, a fim de que eu possa comparar com as recordações que me vêm à mente. Nesse exercício de acessar meu cérebro em busca de lembranças, de vivências nas casas dos parentes, lá na Linha Boêmia, eu as salvo novamente. Talvez... coloque uma pitada de imaginação... ou não...
As memórias podem ser traiçoeiras, não são imutáveis... Além de lembrar com detalhes de certos fatos... como penso que realmente aconteceram, fiz um acordo afetivo, e criei coragem para escrever estas memórias, que precisam de leitores para não falarem sozinhas.
Na evocação dessas lembranças da infância, regressei à casa, a mim mesma, busquei quem eu era, de onde eu vim. Sigo em frente, mas olho para trás, com orgulho da minha ancestralidade.
Marilia Frosi Galvão é professora, escritora e cronista
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