Por Eulália Isabel Coelho
Clarice veio a mim através de “A Maçã no Escuro” e nunca mais nos afastamos. Digo assim, com tanta intimidade, porque (re)conheci minha existência antes e depois dela. Vasculhei minha alma, me reconheci, me perdi, gritei por liberdade. Fui a menina que carregava nas mãos o precioso verbo clariceano em vórtice e coragem.
Nós que adentramos no abstrato com ela, somos famintos de sua palavra. Vislumbramos o inaudito, o que viceja e se pode colher com olhos de ver o impossível, olhos de enigma, desencontrados em si mesmos. Mas nunca o tocamos, pois é e não é, distende-se, encolhe-se, por isso, só nos é dado pressenti-lo.
“Fui além de mim e não posso voltar mais”, disse Clarice. E a gente se pergunta, ingenuamente, o que é ir além de si mesmo? Se não sabemos, descobrimos com ela, no tecido de seu texto, nas indagações sem fim, no aparentemente ininteligível. É assim que amamos Clarice, até não se saber mais como e é aí que a amamos ainda mais.
A escritora: uma força anímica
CLARICE E O CINEMA
A autora afirmava, vez ou outra, não ser uma grande leitora: “Não tenho paciência de ler ficção”. O mesmo não acontecia em relação ao cinema, que amava incondicionalmente. Gostava de filmes impactantes, que mexessem com seus sentidos. Talvez para experimentar desafios ou apenas para vibrar em outra sintonia.
O fato é que Clarice “dizia que gostava tanto de cinema que se pudesse iria todos os dias”, revela a amiga Olga Borelli em seu livro “Clarice Lispector – Esboço Para um Possível Retrato” (Nova Fronteira, Ed. 1981). “Ela só assistia a filmes fortes”, conta Olga, “os de crimes exerciam atração muito grande sobre ela”.
Clarice tinha especial apreço pela obra de George Simenon (1903-1989), criador do comissário Jules Maigret. O personagem aparece em 75 novelas e 28 contos e suas histórias já foram transpostas para cinema e televisão dezenas de vezes. É provável que a escritora tenha assistido a muitos de seus longas.
Atualmente, há uma série de filmes que podem ser vistos na Amazon Prime intitulados Simenon baseados em histórias do autor. Clarice iria gostar dessa novidade!
E hoje, que filmes motivariam a escritora?
Fiz um exercício de imaginação para listar possíveis obras seguindo seu gosto por filmes policiais, de crimes e mistérios, aqueles que mexem com a adrenalina, mas também escolhi alguns que, de certo modo, dialogam com seu legado literário. Esses são carregados de intimismo e narram histórias de pessoas comuns, como as que Clarice compunha.
OS FILMES ESCOLHIDOS - “De Crimes”
MILLENIUM - OS HOMENS QUE NÃO AMAVAM AS MULHERES (Män som hatar kvinnor, 2009)
Lisbeth Salander, investigadora hacker
Como Clarice reagiria ao acompanhar a história de Lisbeth Salander (Noomi Rapace)? Acredito que o faria com grande interesse, uma vez que a trama envolve um desaparecimento não solucionado, pistas e a busca incessante para desvendar o crime que parece apontar para o núcleo familiar da vítima.
Lisbeth é uma investigadora particular, hacker, antissocial, que se envolve no caso ao lado do famoso jornalista Mikael Bomkvist (Michael Nyqvist,1960-2017), editor da revista “Millenium”.
Esse é o primeiro filme da trilogia sueca baseada nos livros do escritor Stieg Larsson (1954-2004) e que entra tranquilo na categoria de “filmes fortes” apreciados por Clarice. Há também uma versão norte-americana estrelada por Daniel Graig e Rooney Mara.
Os outros dois filmes são: A Menina que Brincava com Fogo e A Rainha do Castelo de Ar.
FICHA TÉCNICA:
Direção: Niels Arden Oplev
Elenco: Noomi Rapace, Michael Nyqvist, Lena Endre
Duração: 152min
Suécia/Dinamarca/Alemanha
Assista ao trailer do filme original AQUI
Assista ao trailer da versão norte-americana AQUI
SEVEN – OS SETE PECADOS CAPITAIS (Seven,1995)
Freeman, Kevin Spacey e Brad Pitt em cena
Penso em Clarice fascinada pela trama sombria de Seven, que narra a investigação dos detetives William Somerset (Morgan Freeman) e David Mills (Brad Pitt) para descobrir quem é o serial killer que comete crimes deixando pistas que evocam os sete pecados capitais.
O filme, envolvente, cresce em tensão a cada nova descoberta. Percebe-se, caso a caso, o grau de perversidade do assassino. Uma obra claustrofóbica e inquietante que poderia cair no gosto da escritora.
FICHA TÉCNICA:
Direção: David Fincher
Elenco: Morgan Freeman, Brad Pitt, Gwyneth Paltrow, Kevin Spacey
Duração: 126min
EUA
Assista ao trailer AQUI
O COLECIONADOR DE OSSOS (The Bones Collector, 1999)
A jovem Amelia é guiada por Rhyme
Um filme cheio de suspense, com a policial novata Amelia Donaghy (Angelina Jolie) tentando descobrir um assassino serial com a ajuda de Lincoln Rhyme (Denzel Washington) ex-detetive que, por sua condição de saúde, só pode guiá-la virtualmente.
Clarice com seu fascínio por filmes investigativos, “de crimes”, como disse Olga Borelli, teria assistido atentamente, procurando a cada detalhe desvendar os enigmas propostos.
Neste ano, o detetive Lincoln Rhyme ganhou uma série com seu nome baseada nos livros de Jeffery Deaver, apresentada pela AXN.
FICHA TÉCNICA:
Direção: Phillip Noyce
Elenco: Denzel Washington, Angelina Jolie, Queen Latifah, leland Orser
Duração: 118min
EUA
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OS FILMES ESCOLHIDOS - “DE INTROSPECÇÃO”
A PAREDE (Die Wand, 2012)
Solidão e silêncio sem perspectivas
Uma mulher sozinha com um cão, um gato e uma vaca, escreve para não enlouquecer. Ela está isolada não porque queira, mas porque há uma barreira invisível que a impossibilita de sair do lugar onde está. O filme é uma metáfora que situa o ser humano diante de si próprio, do incontrolável e da luta pela sobrevivência.
Creio que Clarice se identificaria com a subjetividade dessa história e gostaria da mulher em sua clausura vivendo apenas a percepção do agora.
O filme é baseado no best-seller homônimo da escritora austríaca Marlen Haushofer, traduzido para mais de 17 línguas.
FICHA TÉCNICA:
Direção: Julian Roman Pölsler
Elenco: Martina Gedeck, Wolfgang Maria Bauer, Karlheinz Hackl
Duração: 108 min
Áustria/Alemanha
Assista ao trailer original sem legenda AQUI
AS HORAS (The Hours, 2002)
Virginia com o marido Leonard
Imagino Clarice no cinema, com aqueles olhos de pescar a vida em sua mais tenra possibilidade, vendo Virginia Woolf (Nicole Kidman) envolta em melancolia e ânsia por liberdade. O filme, que abarca três tramas em épocas diferentes, nos apresenta a personagens complexos, alguns deles no limite de sua existência.
Todas as histórias têm em comum o livro “Ms. Dalloway”, escrito por Virginia. O filme é baseado no romance homônimo do norte-americano Michael Cunningham, que ganhou o Prêmio Pulitzer pela obra em 1998.
Nicole Kidman recebeu, entre outros prêmios, o Oscar de Melhor Atriz. No Festival de Berlim, ela, Meryll Streep e Juliane Moore foram homenageadas como Urso de Prata de Melhor Elenco Feminino. A trilha sonora de Phillip Glass foi premiada no Bafta Awards.
FICHA TÉCNICA:
Direção: Stephen Daldry
Elenco: Nicole Kidman, Meryll Streep, Julianne Moore, Ed Harris
Duração: 114min
EUA/ Inglaterra
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A LIBERDADE É AZUL (Trois couleurs - Bleu, 1993)
Julie é confrontada com suas perdas
Parece que vejo Clarice observando minuciosamente o rosto de Julie (Juliette Binoche). Um rosto que é também a própria dor estampada. Ela perdeu seus amores, ela decide anular o passado, ela já quis morrer, mas escolheu a vida.
Esse é o primeiro filme da Trilogia das Cores, de Kieslowsky. Os outros são A Liberdade é Branca e A Fraternidade é Vermelha. Mas acredito que Bleu, em especial, colocaria a escritora bem próxima de sua própria contextura imagética e incorpórea.
Juliette Binoche recebeu o Cesar de Melhor Atriz do Festival de Cinema Francês e o diretor ganhou o Leão de Ouro em Veneza.
FICHA TÉCNICA:
Direção: Krzysztof Kieslowsky
Elenco: Juliette Binoche, Hèléne Vincent, Emmanuelle Riva
Duração: 100min
Suíça/ Polônia/ França
Assista ao trailer AQUI
Eulália Isabel Coelho é jornalista, professora de cinema e escritora
bibacoelho10@gmail.com
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