Prosseguindo na leitura do caderno de memória de Francisco Paglioli, deparamos com mais um episódio curioso.
Estava ele já morando em São Francisco de Paula, em Cima da Serra, e sofria de um reumatismo no braço direito, “a ponto de ter dificuldade de escrever: experimentei diversos remédios e pomadas, mas nada adiantou”.
Um dia chegou um seu compadre, um Serrano, e perguntou:
- Como vais de reumatismo?
- Sempre o mesmo, não há jeito de ficar bom.
- Deixa de remédios. Vai aos banhos de mar.
O compadre explicou então como ele devia tomar os banhos. Tinha de entrar no mar de manhã cedo, antes de o sol aparecer. Não devia ficar na água mais de dez minutos, e em seguida ir rápido para a cama e se cobrir bem para transpirar. Naquele dia, não podia mais tomar banho. Esse tratamento devia ser repetido diariamente, até não sentir mais o reumatismo.
Francisco Paglioli topou a sugestão. Morava com ele um estudante de música, que tinha a família perto de Torres, num lugar chamado Espigão. E resolveu levar o rapaz com ele, porque não conhecia a estrada para Torres: o traçado era um rascunho da atual rota do sol! Montaram a cavalo e foram. A jornada de um cavalo de montaria (sei disso porque também vivi essa experiência) é de no máximo oito léguas por dia, o que dá por volta de quarenta quilômetros.
Uma prova disso é que todos os povoados nos Campos de Cima da Serra ficam a vinte quilômetros um do outro: no primeiro se fazia uma parada para comer. No segundo, uma parada para dormir. No primeiro, havia no máximo um boteco. No segundo, pousada para o viajante e estrebaria para os cavalos. De São Chico a Torres devem os dois ter levado certamente três dias, ainda mais que a descida da serra não podia ser feita a trote, muito menos a galope...
Chegando a Torres, foram se hospedar num hotel, perto da igreja. Paglioli procurou um sapateiro, porque os sapatos que levara eram muito folgados. Por coincidência, o sapateiro de Torres também era músico e conhecia a fama de Paglioli como “mestre de música” em São Francisco de Paula. Não só isso: mostrou a Paglioli uma partitura da autoria deste, que ele havia ganho de um músico de Conceição do Arroio (hoje município de Osório). E os dois acabaram indo juntos cantar a missa no domingo, que era dia de festa.
Estava Paglioli almoçando no hotel, depois da missa, quando entrou um homem carregando um cesto cheio de garrafas de cerveja, entregou a ele, e disse:
- O festeiro manda esta cerveja a um cantor que cantou na missa!
Paglioli começou o tratamento do reumatismo na manhã seguinte, seguindo as instruções de seu compadre, com este desfecho:
Para chegar à praia, eu caminhava bem, pois era descida. Eu, que não conhecia o lugar, coloquei-me encostado a uma grande pedra, de modo que quando vinha a onda me banhava e depois ficava no enxuto, não havendo algum perigo de que a água me arrastasse
[...] Como tinha pressa, depois do banho, quando estava no hotel já estava todo suado. Metia-me na cama e lá ficava um bom pedaço de tempo.
Depois de dez a doze dias de perseverança no tratamento, fiquei curado.
Mais um relato com final feliz!
José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.
pozenato@terra.com.br
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