O leitor inveterado que eu era, a ponto de posar para fotografia com um livro na mão, aos oito anos de idade, teve contato com diversos textos que foram abrindo os horizontes do mundo, para além de São Roque da Goiabeira.
Um livro fundamental foi a Seleta em Prosa e Verso, da autoria de Alfredo Clemente Pinto. O fato de ele se chamar Clemente, um tocaio meu (como a gente denominava o homônimo, ou xará), já era motivo de interesse. Era um livro dedicado “à mocidade estudiosa”, como escreveu seu autor no prefácio, “pondo diante dos olhos trechos que possam servir de modelo nos exercícios de redação”.
Da variedade de textos da Seleta, lembro alguns que me marcaram.
O mais decisivo foi, com certeza, o conto “Um Apólogo”, de Machado de Assis, que narra um diálogo entre a agulha e a linha sobre qual das duas é mais importante. O apólogo termina com a consideração de um professor, de que “também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária”. Esse apólogo eu aprendi de cor para fazer parte de uma declamação na escola. Acho que não por acaso o professor, que era meu pai, deu tanta importância ao conto machadiano. Ele também devia se sentir uma agulha...
Outro texto inesquecível foi o soneto de Artur Azevedo, “Tertuliano, frívolo, peralta”, que aprendi de cor, e muitas vezes o recitei comigo mesmo, quando aparecia algum narcisista na minha frente. Entre outros sonetos da Seleta, guardei ainda na memória: “Vai-se a primeira pomba despertada”, de Raimundo Correia, “Meu ser evaporei na lida insana”, de Bocage, “Velhas árvores”, de Olavo Bilac, e “Sete anos de pastor Jacó servia”, de Camões. Não por acaso meu ouvido lida bem com o decassílabo!
De Olavo Bilac aprendi de cor outros dois sonetos, para declamar na escola: “Ama com fé e orgulho a terra em que nasceste” e o “Ora direis, ouvir estrelas”.
Na Seleta havia ainda fábulas e várias ilustrações mostrando paisagens do Brasil. Outro texto que me encantava era o da abertura do livro, com a história do “ovo de Colombo”: as coisas são fáceis para quem sabe fazer!
Outro livro decisivo na minha infância foi Histórias do Arco da Velha, que meu pai mandou buscar pelo correio nada menos que na Livraria Quaresma, do Rio de Janeiro. Livraria que fiz questão de conhecer, na primeira vez que fui ao Rio. De todas as histórias do livro, traduzidas de Perrault e dos Irmãos Grimm, a de que eu mais gostava era a que tinha por título “A Pele de Asno”. Conta a história de uma princesa que fugiu para a floresta vestida com uma pele de asno. Sucedem-se inúmeras peripécias, típicas dos contos de Perrault.
Lendas do Sul, de Simões Lopes Neto, também estava na prateleira da biblioteca, como meu pai chamava sua estante de livros. Dessas lendas, a que mais me encantava era a da “Salamanca do Jarau”. Depois dela vinham “O negrinho do Pastoreio” e “A Mboitatá”.
Havia um vizinho nosso, amigo de meu pai, que inspirou o personagem Scariot, de meu romance O Quatrilho. Todos o chamavam de “Scariot”. Isso porque ele se negava a frequentar a igreja e se dizia anarquista. Era também um beberrão, daqueles de dormir na estrada. Isto é, tinha tudo para ser personagem de romance. Um dia ele deu de presente para meu pai um livro em italiano, Le mille e una notte (As mil e uma noites). O italiano eu não entendia, por isso não li as histórias, mas não me cansava de folhear o livro para ver as ilustrações coloridas, com sultões e odaliscas... E um tapete voador! Talvez tenha nascido aí meu interesse pela dimensão visual da narrativa, consolidada depois pelas sessões de cinema.
Outra de minhas leituras permanentes era a do Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, da autoria de Gustavo Barroso. Eu gostava de ver palavras novas e buscar o seu significado.
De todas essas leituras acabei criando um gosto meio parnasiano, ou rebuscado, também na escrita. Tanto que no ginásio, num tema de redação, comecei com esta frase: “Nuvens plúmbeas cobriam o céu”. O professor a leu em voz alta, diante da turma, e me perguntou:
- “Plúmbeas” por quê?
- Porque elas eram cor de chumbo, professor – respondi.
- Mas então escreva “nuvens cor de chumbo cobriam o céu”. Assim todos vão entender – disse ele, com um riso simpático.
Talvez tenha sido essa a mais importante aula de estilística que tive. O modo parnasiano, de usar adjetivos para enfeitar as frases, foi claramente posto em questão por esse professor. Depois, lendo Machado de Assis, descobri que também ele buscava o que Mário de Alencar chamou de “perfeição da simplicidade”, baseada numa “linguagem coloquial”, como a qualificou Mattoso Câmara.
No ginásio também descobri, num livro de Manuel Bandeira, intitulado Apresentação da Poesia Brasileira, que para escrever bonito não era preciso “ouvir estrelas” nem falar de “céu plúmbeo”. Mas isso fica para quando eu falar, se falar, de meu itinerário na poesia.
José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.
pozenato@terra.com.br
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