Guilhermino César foi um mineiro que estudou o Rio Grande do Sul mais do que ninguém. Além da História da Literatura do Rio Grande do Sul (Editora Globo, 1956), sua obra mais conhecida, escreveu também História do Rio Grande do Sul. Período Colonial (Editora Globo, 1970).
Nesta segunda obra, ele nos revela a história do uso das marcas de ferro no gado no Sul do Brasil. Segundo suas pesquisas, já a partir de 1767 as marcas deviam ser registradas, incluindo seu desenho, na Câmara de Viamão. Dali os registros deviam ser levados à Correição dos Juízes de Laguna, em Santa Catarina, que era o fórum jurídico mais próximo. O Brasil era ainda colônia portuguesa, e os procedimentos legais deviam seguir os estabelecidos no além-mar.
Como testemunho, Guilhermino César cita Nicolau Dreys (1781-1843), um francês nascido em Nancy, que fez carreira militar e veio para o Brasil em 1817, depois da derrota de Napoleão em Waterloo. Estabeleceu-se no Rio de Janeiro como comerciante, e depois mudou-se para Porto Alegre, onde continuou no comércio, ligado às charqueadas de Pelotas. Viajou por grande parte do estado e escreveu a obra Notícia Descritiva da Província do Rio Grande de São Pedro.
Ao relatar o uso da marca do gado nas fazendas do Sul do Brasil naquela época, Dreys assim a caracteriza:
A marca consiste numa figura arbitrária aplicada com um ferro quente sobre um dos quartos traseiros. Cada estancieiro tem sua marca, donde se pode concluir que o número delas é considerável. Esses hieróglifos compõem uma verdadeira escrituração chinesa: cada desenho é uma frase que significa que fulano de tal é o dono, da estância de tal nome e morador em tal parte. Apesar da complicação de tão árdua estenografia, acham-se, no Sul, homens de tão atilada reminiscência, que basta-lhes examinar qualquer marca para logo dizerem de que estância saiu o animal e, por consequência, a que dono pertence.
A primeira legislação específica a regulamentar o uso da marca no Rio Grande do Sul foi uma Lei de número 203, de 12 de dezembro de 1850. Nicolau Dreys já havia saído de cena. Dessa lei constavam as seguintes prescrições, que se tornaram praxe seguida em todas as estâncias gaúchas:
obrigatoriedade do registro das marcas nas respectivas Câmaras Municipais, dentro de prazos estabelecidos;
eliminação das marcas repetidas, prevalecendo a mais antiga ou a com maior número de reses já marcadas;
o trânsito de tropas de gado devia ser feito com documento expedido por Tabelião ou Juiz de Paz. Nele devia constar o desenho da marca, ou marcas, do gado em trânsito.
Nessa lei não constavam as dimensões que deviam ter as marcas, que chegavam a ter mais de um palmo de comprimento. Mas uma legislação posterior estabeleceu uma norma, em que elas não deviam ser muito grandes para não desvalorizar o couro, então usado na produção industrial.
A partir de 1910, já no início do século XX, a legislação sobre marcas passou a ser feita pelo governo federal. Os procedimentos de marcação passaram então a ser uniformes em todo o território nacional.
A marca tinha tanta importância que era transmitida de geração em geração, como um patrimônio de família. Um relato colhido na região dos Campos de Cima da Serra é significativo sob este aspecto: o padrinho de um menino deu-lhe de presente de batizado uma marca de ferro, para que ele a usasse quando criasse suas próprias reses. E essa marca continua, acredito que até hoje, exposta na parede da sala principal da sede da fazenda.
Essa sua importância, certamente, é que levou os legisladores a estabelecer regras rígidas para seu uso. Para quem acha que burocracia complicada é uma marca de nosso tempo, tem aí um exemplo de como ela é antiga...
José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.
pozenato@terra.com.br
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